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O aborto livre nunca será raro (por Pedro Vaz Patto)

As notícias sobre a publicação dos últimos dados relativos à prática do aborto legal em Portugal (ver Público, 31/3/2011) vieram acompanhadas da conclusão de que em 2010 se verificou um ligeiro decréscimo em relação a 2009 e de que os números estão ligeiramente abaixo das estimativas sobre a prática do aborto clandestino antes da sua liberalização, que apontavam para os vinte mil por ano. Houve mesmo quem, de entre os partidários da nova lei, manifestasse algum júbilo por se confirmar a tendência, que se verificou noutros países, para a estabilização dessa prática depois de uma subida nos primeiros anos após a liberalização.

Poderá o decréscimo não ter grande significado. E importa considerar que não são contabilizados os abortos clandestinos que – como todos reconhecem – continuam a praticar-se, pelo que o número global da prática do aborto será certamente superior à estimativa de vinte mil. Por outro lado, as estimativas anteriores à liberalização não se apoiavam em dados rigorosos; resultavam, geralmente, de uma simples transposição da média europeia em países em que aborto é livre, no pressuposto de que a ilegalização que vigorava em Portugal não limitava efectivamente, de qualquer modo, a prática do aborto.

A ideia de que a liberalização de uma prática não provoca o seu incremento contradiz, porém a lógica que subjaz a qualquer política legislativa. Parece lógico que quando o Estado torna uma conduta livre e, mais do que isso, como se verifica agora entre nós com o aborto, passa a colaborar activamente na sua prática, a ela destinando os seus recursos humanos e financeiros sem qualquer contrapartida, não pode deixar de contribuir para o seu incremento. Tornar o aborto livre e gratuito não pode deixar de contribuir para o incremento da sua prática. A pretensão de que o aborto se torne raro num regime de liberalização (legal. seguro e raro – segundo o famosos slogan) será sempre ilusória e tal não se verifica em nenhum país do mundo. Quando pretende limitar uma prática (o consumo de tabaco, por exemplo), qualquer legislador faz exactamente o contrário: dificulta-a, não a facilita.

Os números agora divulgados só podem confirmar isso. De entre as mulheres que praticaram o aborto no último ano, cerca de uma quarto não o fizeram pela primeira vez (24, 5%), e, de entre estas, mais de metade (12,7%), tinham-no feito desde 2008, já na vigência da actual lei. Daqui pode concluir-se que a nova lei propicia a repetição do aborto, contribui para a sua banalização. A repetição do aborto nos poucos anos de vigência da nova lei é superior à que é relativa a abortos praticados em todos os anos anteriores.

É de registar e louvar a preocupação dos partidários da nova lei com a repetição da prática do aborto. Mas este fenómeno é uma consequência inevitável da própria lei. Quando o Estado, através de um regime de liberalização, veicula a ideia de que o aborto não é um atentado contra a vida, é um direito ou um serviço de “saúde reprodutiva”, como se poderá pretender que convictamente se renuncie a esse direito ou serviço? O que pode motivar essa renúncia só pode ser a consciência clara de que a vida humana é inviolável em todas as suas fases e um dom inestimável apesar de todas as dificuldades. E o regime de liberalização transmite uma mensagem cultural que é exactamente o oposto dessa.

Não se trata de ter mais ou menos cuidado na utilização dos métodos de planeamento familiar. A tutela da vida não pode depender de uma maior atenção ou de um menor descuido. Nem sequer do acesso e informação sobre planeamento familiar. Há países como a Suécia, a Noruega, o Reino Unido e a França, com níveis de bem-estar social e saúde pública dos mais elevados, onde a prática do aborto é ainda mais frequente do que entre nós. Não o será certamente por falta de informação ou de acesso ao planeamento familiar.

É da consciência do valor da vida humana que depende o nível de prática do aborto. E para a formação das consciências também contribui o sistema legislativo. É por isso que o aborto livre nunca será raro.