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Justiça na distribuição dos sacrifícios (por Hermínio Rico, sj.)

Estamos em tempo de sacrifícios. Muitos já se sentem: sobem impostos e descem apoios sociais e subsídios, salários e reformas diminuem. Parece inevitável que mais ainda serão necessários.

Estivemos a viver, em agregado, durante muitos anos muito acima das nossas posses, agora há que regressar a consumos dentro dos limites da riqueza que produzimos e, ainda mais, poupar o suficiente para irmos pagando o muito que nos emprestaram e que criou ilusão de abastança. Ninguém questiona a necessidade dos sacrifícios, mas não parece ainda haver consciência, para lá das afirmações abstractas, que eles cabem a todos. No concreto, ouvem-se muito mais as recusas liminares a que se ponha em causa qualquer “direito adquirido” (às vezes acompanhadas de reivindicações e protestos ainda mais difíceis de entender), do que a aceitação responsável de sacrifícios próprios em nome da solidariedade colectiva.

A cultura dos direitos sociais desenvolveu-se num contexto onde parecia que o crescimento era uma realidade definitiva, de efeitos permanentes, que iria acumulando inexoravelmente um bolo cada vez maior que se poderia, então, ir distribuindo em cada vez em maior quantidade global. Nesta perspectiva de incremento contínuo, faria algum sentido falar em direitos adquiridos, travão que recusa qualquer retrocesso naquilo que o colectivo social já tinha condições de garantir aos seus membros. Só se podia andar para a frente. A fronteira da discussão centrar-se-ia, assim, na possibilidade de outorgar novos direitos e na eleição daqueles que se deviam eleger prioritariamente. O desejo de estabelecer este caminho de desenvolvimento social em crescimento levou à consagração legislativa desses direitos e da sua irreversibilidade.

Mas o mundo mudou, o contexto é agora diferente. O que há para distribuir não são novos recursos, mas sim cortes no que se estava a receber. A poupança que nos é exigida impõe uma redução violenta do rendimento disponível. Como se vão distribuir estes sacrifícios? O simples jogo das pressões sociais dos diferentes grupos não garante resultados equitativos. Sem outros correctivos, servirá, provavelmente, para aprofundar injustiças. Aquilo que permitiu a alguns alcançar estatutos relativos favoráveis continuará a dar-lhes uma capacidade de resistência desproporcionada aos cortes, permitindo-lhes sacudir os sacrifícios para outros com menos poder. No fim, a injustiça cresce: os que já eram favorecidos têm mais possibilidade de passar incólumes no esforço colectivo de austeridade. Não é tolerável que o ponto de partida seja a defesa de direitos adquiridos, deixando aos equilíbrios de poder o papel de mostrarem quem tem mais capacidade de defender esses direitos particulares.

Numa situação onde, de repente, há muito menos disponibilidades do que havia antes, o respeito pela justiça exigiria considerar as coisas a partir do princípio. Primeiro, ver quanto é que de facto existe para ser distribuído. Segundo, estabelecer as prioridades de necessidades e de necessitados que devem ser atendidos. E aqui, obviamente, os direitos naturais das pessoas às condições mínimas de sobrevivência e de promoção da dignidade humana têm que ter prioridade sobre outros direitos positivos de grupos sociais, por mais garantias constitucionais que até tenham alcançado. Quando, subitamente (e, esperemos, que o mais transitoriamente possível), deixa de ser possível manter o que havia, há que distribuir outra vez a partir do princípio e não se pode ficar a ver quem é mais eficaz a agarrar-se àquilo que já tem, sem atenção aos mais frágeis, os que menos tinham e mais facilmente até o pouco que têm podem rapidamente perder.

É claro que esta situação ideal de voltar as condições e critérios de redistribuição a partir do zero é impossível de realizar. Trata-se apenas de um artifício intelectual para criar consciência dos imperativos de justiça. Na realidade, há que partir do que existe e não se podem ter ilusões que todos voluntariamente vão mostrar disponibilidade para abrir mão dos seus “direitos adquiridos”. As exigências da justiça têm que ser proclamadas a todos e exigidas aos decisores. Um compromisso activo por esta justiça, assumido pela Igreja institucional e por todos os cristãos, tanto pela palavra como pelo testemunho de acções concretas, é uma responsabilidade que, em nome da coerência evangélica e da fidelidade aos princípios do Reino de Jesus Cristo, não lhes é permitido iludir. E é um compromisso que os mais indefesos da sociedade portuguesa desesperadamente precisam.