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Cristãos escondidos (por Guilherme d?Oliveira Martins)

Naquele dia de Outono, Quioto estava na plenitude da sua beleza. Era o tempo do momiji, em que a natureza culta, domada pelo ser humano, é dominada pelas folhas escarlate, como se fossem flores.

Deambulámos pelos caminhos do jardim, contámos as suas pedras, deslumbrámo-nos com os musgos tratados, com as águas, com os lagos, com os jardins secos, com o saibro riscado ou a terra cuidadosamente penteada a representar ilhas, oceanos e os rios da vida. Com voz serena, dois mestres andavam e a sua conversa fluía, bem como os seus silêncios. Por vezes, eram longos silêncios, seguidos de frases ponderadas. Depressa percebemos que o tema que os ocupava era o silêncio. Afinal, o silêncio poderia ser o conhecimento, a sabedoria, a luz ou a natureza.

Um monge budista dialogava com um clérigo cristão. E nos tempos de silêncio olhavam-se olhos nos olhos, procurando entender-se e compreender. A longa conversa prolongou-se, e o silêncio ganhava vários sentidos: como ausência de palavras, mas sobretudo como capacidade de ouvir o universo, e era a ligação natural entre o belo e o bem. A contemplação dos jardins tinha um especial significado, os mares de saibro riscado, a ordenação das pedras, os montículos, os cursos de água, as folhas e as flores. Mas, para além dos jardins, havia as pinturas nas portas móveis, os bambus flexíveis, os tigres e as aves de penas exuberantes, sobre o dourado dos fundos. E havia as representações de Buda e dos bodhisatvas. A certa altura, o clérigo lembrou que, dias antes, passara pelo templo da Eterna Sabedoria e que entabulara conversa com outro monge, à espera de poder entender a sabedoria zen. Demorou a integrar-se naquele ambiente, sentou-se diante das quinze pedras do jardim seco e percebeu que nunca poderia vê-las a todas em simultâneo. O monge surpreendeu-se, contudo, com a atitude de compreensão do clérigo: “Já aqui estou há vinte anos e cada vez compreendo menos”. O silêncio como audição do universo é, afinal, do domínio do mistério, do mistério que nos leva a ter dificuldade em entender o momento supremo que nos conduz ao belo. De súbito, o clérigo recordou-se do que lera dias atrás no romance de Shusaku Endo. “O Senhor não ficará em silêncio. Mesmo admitindo que Ele se mantenha calado, toda a minha vida até hoje falará d’Ele para todo o sempre”. Estavam em causa os cristãos escondidos e a barreira de cultura entre uma religião estrangeira e o enraizamento familiar da cultura japonesa. O monge conhecia bem a história do tempo dos mártires cristãos do Japão. Eles deram testemunho, mas também houve outros que preferiram mergulhar na vida japonesa, dilacerados entre a fidelidade do gesto e a fidelidade do princípio, tendo como fundo o silêncio mais dramático, que é o da dúvida e do remorso. O missionário português partiu para Nagasáqui, onde era professor. Mas aquela longa conversa de mestre a discípulo e de discípulo a mestre não poderia ser facilmente esquecida. O mistério do silêncio pesava intensamente. A verdade não se poderia aprender apenas pela aplicação dos sentidos. Antes da Missa do Galo, quando se paramentava, o clérigo foi invadido por todas as dúvidas. “Podes pisar-me!” – pareceu dizer Cristo representado no “fumie” usado como instrumento de perseguição. Como? Era o profundo mistério do silêncio que se manifestava – ausência de palavras e audição do universo, mas também fidelidade íntima. As notas que tinha preparado para a homilia espelhavam todos os enigmas do amor e da caridade. Recordaria o Padre Petitjean, o missionário francês de Oura, chegado há 150 anos, surpreendido pela presença de muitos cristãos que ninguém suspeitava existirem, que se tinham mantido fiéis, em silêncio, durante mais de duzentos anos. E o milagre repetia-se, num presépio japonês vivo. A igreja encheu-se de gente desconhecida. E muitos fiéis daquela noite traziam pequenas imagens de Kannon, símbolo búdico da misericórdia e do cuidado, assinaladas por uma pequena cruz. E o clérigo lembrou-se: «Mesmo admitindo que o Senhor se mantenha calado, toda a minha vida falará d’Ele para todo o sempre».