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Diálogo Inter-Religioso. (por Guilherme d?Oliveira Martins)

O diálogo é a chave para a solidariedade nas comunidades plurais do século XXI. A identidade faz-se, desfaz-se e refaz-se nas sociedades abertas e complexas e o grande apelo do presente é no sentido de a globalização não se tornar uma marca de indiferença e de uniformização.

É fundamental que haja diferença, que cada qual seja ele próprio, mas também que a identidade seja cosmopolita, compósita e planetária, «com tudo o que isso significa de enriquecimento e ao mesmo tempo de complexidades e possíveis rupturas». Como lembra Anselmo Borges (Religião e Diálogo Inter-Religioso, 2010), «o outro é vivido sempre como fascinante e ameaça» - «porque o outro é outro como eu, e, simultaneamente, um eu outro, outro que não eu». Esta é a ambiguidade e a dificuldade suscitada pelo outro. Hóspede e hostil têm, afinal, a mesma etimologia, como hospitalidade e hostilidade. Eis a ironia da vida das palavras.

 

Se o tema da identidade é actualíssimo, a verdade é que ele contém a ambiguidade que resulta da dificuldade e das resistências que há sempre na relação com o outro. A relação da Europa com a imigração hoje é ilustrativa dessa contradição. Os medos que se acumulam são disso mesmo demonstração. O mesmo se diga do tema da paz: Hans Küng tem dito que só o diálogo entre as religiões pode criar bases seguras para a paz («sem paz entre as religiões não haverá paz entre as nações, e essa paz supõe o conhecimento e o diálogo entre as religiões»). E lembre-se ainda o tema da violência, no qual o homem julga poder apoderar-se de um Deus infinito e omnipotente para compensar o seu carácter finito e mortal. Importa acrescentar o tema dos fundamentalismos, tão referido, mas tão pouco entendido, que se liga à tentação de cada um se julgar possuidor da verdade toda. «Quem é o homem, um ser finito, para considerar-se senhor do Fundamento?». E daqui temos de seguir até ao tema da necessária dessacralização da política e à consequente separação das igrejas do Estado, que torna os cidadãos «livres de terem esta ou aquela religião ou nenhuma», em virtude da desconfessionalização do espaço público. No fundo, a sociedade aberta precisa de uma relação cooperativa e de respeito diante do fenómeno religioso. Como diz Jürgen Habermas: «os cidadãos secularizados, no exercício do seu papel de cidadãos, não podem negar liminarmente um potencial de verdade às imagens religiosas do mundo nem pôr em causa o direito de os seus cidadãos crentes contribuírem, na linguagem que lhes é própria, para as discussões públicas». E o antigo Presidente alemão Johannes Rau invocou a «secularidade esclarecida» como método de acção numa sociedade solidária.

 

O diálogo autêntico é, porém, difícil, por isso Juan Masiá refere cinco pontos que nele devem estar presentes: conhecimento mútuo e partilha do que é comum; consciência do que aproxima e do que afasta e é incompatível; sentido autocrítico e reconhecimento do lastro da história que transportamos; capacidade para começar a construir um horizonte comum de linguagem e diálogo, não confundível com qualquer sincretismo ou esperanto das religiões; e entendimento de uma espiritualidade para além da perspectiva de cada religião. Daí a lembrança da parábola dos três anéis. O sultão Saladino perguntou ao judeu Melquisedech qual das três Leis (judaica, cristã ou islâmica) julgava ser verdadeira. E este recordou a parábola do anel belíssimo e precioso que deveria transmitir-se como sinal de permanência e de virtude de uma família. Chegou um dia em que um pai tinha três filhos, todos virtuosos, a que amava por igual. Como não soubesse como escolher, encomendou dois outros anéis, absolutamente iguais e contemplou os três sem ter de eleger um só herdeiro… «A questão ficou pendente, e assim continuou até hoje, sem se poder determinar o verdadeiro herdeiro». O tempo ficou suspenso, à espera de quem mostrasse a verdade da fé «mediante boas obras e amor».