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Duc in altum, pelo pe. Alexandre Palma
«Lisboa amiga, porto e abrigo de tantas esperanças que te confiava quem partia e pretendia quem te visitava, gostava de usar hoje as chaves que me entregas para alicerçar as tuas esperanças humanas na Esperança divina».

Não foi preciso muito para que a recente visita do Papa a Portugal perdesse destaque na comunicação social. Pelas minhas contas, doze horas bastaram para que tão intensa jornada fosse relegada para as notícias de segunda ordem ou desaparecesse mesmo dos cabeçalhos de jornais ou dos destaques na internet. Outros assuntos, de inegável importância, impuseram-se de imediato. Não é isto qualquer lamento, apenas simples constatação: é assim a voragem do tempo mediático, muito mais adaptado à intensidade dos instantes que ao tempo de análises serenas. Estas análises serão hoje tarefa de quantos, embalados pela emoção da visita, queiram «esmiuçar» o que nos trouxe a presença e a palavra do Santo Padre, a reflexão que nos propôs e a missão a que nos animou.

Foi como uma «proposta de sabedoria e missão» que Bento XVI, logo quando pela primeira vez tomou entre nós a palavra, definiu esta visita. É à luz desta síntese que gostaria, também eu, de agora revisitar quanto o Papa nos disse:

- «Proposta»: sabemos quão difícil é, no concreto, articular a solidez de uma presença com uma atitude dialogante «sem ambiguidades […], à qual a Igreja não se subtrai». Bento XVI parece conseguir viver nessa fronteira como ninguém. Mostrou-o em Portugal, o que só surpreendeu quem anda mais distraído. Há, por um lado, «toda uma aprendizagem a fazer quanto ao modo da Igreja estar no mundo», sabendo que «viver na pluralidade de sistemas de valores e de quadros éticos exige uma viagem ao centro de si mesmo e ao cerne do cristianismo». Esta «é uma aprendizagem que a própria Igreja está a fazer». Há, por outro lado, a total disponibilidade para «colaborar com quem não marginaliza» este cerne da experiência eclesial. Também da sociedade se espera a percepção de que «nada impomos, mas sempre propomos» e daquilo que magistralmente ouvimos do nosso Patriarca: «A maioria católica não tira o lugar a ninguém».

- «de sabedoria»: apresentar a vida cristã como escola de «sabedoria» é, estou em crer, uma via de futuro para o anúncio do Evangelho. Bento XVI apresentou-se entre nós, antes de mais, como homem «sábio». Não tanto pelo muito conhecimento acumulado, mas sobretudo pela atitude de uma humanidade cultivada. Falou-nos da sabedoria, «isto é um sentido da vida e da história», como aspiração do coração humano que «só Cristo pode satisfazer plenamente» e como «de uma visão sábia sobre a vida e sobre o mundo deriva o ordenamento justo da sociedade». Lembrou ainda, de forma particularmente bela, a nossa história, reconhecendo como «com sabedoria cristã pudestes transplantar experiências e particularidades abrindo-vos ao contributo dos outros para serdes vós próprios, em aparente debilidade que é força».

- «e de missão»: tenho para mim que quando uma qualquer instituição se ocupa mais com a sua organização interna que com olhar para lá de si corre sérios riscos de deixar de saber quem é. Não ouso dizer que era a isto que o Papa se referia ao alertar para «uma confiança talvez excessiva nas estruturas e nos programas eclesiais», para «tempo perdido» e «trabalho adiado», para a «tentação de nos limitarmos ao que ainda temos, ou julgamos ter», o que «seria morrer a prazo». Certo é, porém, que segundo ele, «a Igreja sente como sua missão prioritária, na cultura actual, manter desperta a busca da verdade e, consequentemente, de Deus; levar as pessoas a olharem para além das coisas penúltimas e porem-se à procura das últimas». Contudo, não com «simples discursos ou apelos morais», mas pelo «encontro com pessoas crentes» que testemunham como «é belo ser amigo de Jesus e que vale a pena segui-Lo».

Concluo reportando-me ao esplêndido cenário da missa no Terreiro do Paço. Vi naquele altar suspenso sobre as águas uma barca, aquela barca onde outrora Pedro, na companhia de Jesus, atravessara outros mares. Foi como se Pedro continuasse navegando os oceanos do mundo e tivesse encostado a sua barca em Portugal, país de marinheiros, para que com ele também nós nos lançássemos na aventura que é viajar na «barca de Jesus». Foi como se Pedro, entrado no Tejo, tivesse vindo dizer à «Lisboa amiga» aquilo que Cristo um dia lhe disse a ele: «Duc in altum – Faz-te ao largo» (Lc 5,4)!