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Experimentar o sonho, pelo padre Hermínio Rico, sj
O “25 de Abril” tornou-se um símbolo de muitos significados, intenso pelas contradições que evoca, em que se projectam visões ideológicas opostas, nostalgias ou ressentimentos, consoante a leitura que cada um faz das implicações da mudança de regime que se deu nessa data e de tudo o que se passou nos tempos logo a seguir.

Mas, na origem destes muitos “25 de Abril” que hoje ainda despertam emoções fortes, houve uma experiência comum de oportunidade, vivida com muita intensidade por todos durante alguns dias. Rapidamente, é certo, apareceram divisões, entrou-se em fase de confrontos, de “lutas”, como então se gostava de dizer. Perdeu-se a inocência bem depressa, mas a possibilidade sentida e o entusiasmo contagioso foi uma experiência generalizada duma esperança que era palpável. E isso mobilizou para a participação cívica, para o compromisso político, o debate de ideias. Tudo parecia possível e fácil! Obviamente que havia muita ingenuidade, bem aproveitada pelos oportunismos demagógicos e as descaradas manipulações ideológicas. Mas isso não tira que tenha sido um tempo único, uma experiência valiosa de poder vibrar com uma sociedade que sentia o destino nas suas próprias mãos. Ninguém chega a lado nenhum sem sonhos, e aqueles poucos dias foram ocasião de sonhar em comum liberdade e justiça, felicidade para todos. A utopia, afinal, pode ter efeitos reais.

Já lá vão 36 anos desde 1974. Temos distanciamento suficiente para avaliar o que se alcançou e também a dimensão das oportunidades perdidas. Faltou disciplina, organização, esforço para aproveitar a motivação favorável. O que parecia tão fácil acabou por ser também facilmente desbaratado. Em vez de construção e progresso, o resultado – em termos económicos – começou por ser destruição e retrocesso, obrigando, em seguida, a um esforço de reconstrução. Mas, arrisco dizer, a força esclarecida que nunca desistiu e foi capaz, uns poucos anos mais tarde, de nos reconduzir a um esforço organizado de desenvolvimento num quadro democrático ainda vinha da experiência vivida naqueles dias depois do 25 de Abril. Experimentar o poder mobilizador do sonho partilhado é importante. Talvez mesmo essencial para um empenho sustentado em tarefas difíceis.

Se, então, tudo parecia fácil, hoje tudo parece muito difícil no nosso percurso comum de desenvolvimento. Talvez se tenha falhado por falta de esforço. Sobrava o sonho, mas não havia suficiente realismo. Hoje, haverá um bocado mais de realismo, mas falta muito a dimensão do sonho, acreditar na possibilidade, ser capaz de se mobilizar, com sacrifício mesmo, para alcançar o que se deseja e de que não se quer abdicar.

Passados 36 anos, isso significa que quem tem hoje menos de quarenta ou quarenta e cinco anos não tem memória dessa experiência utópica, mas mobilizadora, do 25 de Abril. Onde poderemos hoje, como nação, reencontrar o sonho que nos faz falta? É mais fácil desencadear o poder das utopias quando se vivem limitações à liberdade ou quando todos se unem contra algo ou alguém. Mas quando não se pode culpar ninguém senão nós mesmos pelo estado em que as coisas estão, aí, então, é mais difícil romper a inércia. É preciso visão – capacidade de entrever o que não é mas pode vir a ser, se o quisermos verdadeiramente; e coragem para enfrentar os obstáculos (que são maiores no início); e, ainda mais, poder real de mobilizar, de contagiar outros com a mesma visão. Porque este sonho só funciona se for algo sentido como sonho comum. A simples soma de interesses pessoais, corporativos ou de pequenos grupos nunca nos consegue levar lá. Precisamos de sonhar juntos!