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Ler a realidade e a arte?, por Guilherme d?Oliveira Martins
Os ensaios de “Sob um Falso Nome” de Cristina Campo (Assírio e Alvim, 2008) estão unidos por um fio condutor que tem a ver com “uma atenta leitura da realidade e da arte”, isto é, “uma leitura total, em planos múltiplos: poético, humano, espiritual, religioso e simbólico”. Com esta obra, servida por uma excelente tradução de Armando Silva Carvalho, reencontramos a autora de “Os Imperdoáveis”, livro também publicado na mesma colecção “Teofanias”, biblioteca deslumbrante, que agora nos traz este tesouro. Os ensaios abordam desde a liturgia cristã a Truman Capote, passando por Simone Weil, Djuna Barnes, Virgínia Wolf, Katherine Mainsfield, Jorge Luís Borges, D’Annunzio e Shakespeare. E a cada passo sentimos a densidade espiritual e a capacidade de encantamento que a escrita de Cristina Campo sempre contém.

Vittoria Guerrini (1923-1977) nasceu em Bolonha e morreu em Roma. Adoptou o pseudónimo de Cristina Campo para assinar a sua poesia. Cristina, “portadora de Cristo” e Campo, “numa referência aos campos de concentração, característica dramática do nosso tempo, “campos de dor”, segundo a sua própria expressão. Cultora entusiasta da literatura, traduziu e comentou de Homero a Hölderlin, passando pelos Padres do Deserto, por S. João da Cruz, Proust, Emily Dickinson, Djuna Barnes, Katherine Mansfield, William Carlos Williams e Simone Weil. Dir-se-ia que Cristina busca na literatura a chave para muitos dos enigmas a que procura responder. Mário Luzi, que ofereceu a Vittoria o primeiro texto de Simone Weil, fala, aliás, de um vasto território comum à iluminação poética e religiosa. Em 1953 prepara a antologia, que nunca seria publicada, “Il Livro delle 80 poetesse” (obra ambiciosa, que pretendia ser “uma recolha nunca tentada até agora das mais puras páginas escritas por mãos femininas através dos tempos”). Em 1956 vem a lume o primeiro livro de poesia, “O Passo do Adeus” (traduzido em português), e a partir de 1960, depois do contacto com Elémire Zolla, inicia uma significativa fase mística. O tema da liturgia entusiasmou-a, como sinal de glorificação e encontro do mistério com a humanidade. É por isso que afirma: “A complexidade do gesto de Madalena (a unção de Betânia) (…) faz com que algo de litúrgico se torne de certo modo sacramental. Mas podemos recordar, ainda antes do seu gesto, aquele não menos inefável, ainda que mais simples, dos sapientíssimos Magos. Os quais, partindo em busca de um menino necessitado de tudo, não lhe levaram leite nem vestuário, mas as insígnias da Sua tríplice dignidade de Profeta, de Sacerdote e de Rei”. Afinal, o próprio Deus, apesar de ter encarnado numa criança pobre, não dispensa a celebração simbólica da sua glória, representada pela liturgia. De um modo claro e simples, a escritora liga o sagrado e o simbólico, o espírito e a poesia – longe de qualquer ostentação, mas com os olhos postos numa dignidade perene. “Todo o homem que produz um acto livre projecta a sua personalidade no infinito” – como disse Léon Bloy, a propósito do mistério da Reversibilidade, que é o nome filosófico da Comunhão dos Santos. “Um movimento de piedade canta por ele os louvores divinos… cuida dos enfermos, consola os desesperados, aplaca as tempestades, regata os maus, converte os infiéis e protege o género humano”. Mas se é assim para os movimentos de piedade, é o contrário para a hipocrisia e a falsidade…

Cristina Campo recorda, ainda, Hoffmannsthal, a propósito de Jorge Luís Borges: “Descrever com extrema precisão física coisas fisicamente impossíveis, essa é a verdadeira criação através da palavra”. E invoca “O Imortal”, publicado a abrir o “Aleph”. Aí se conta a história de um misterioso antiquário de Esmirna, Joseph Cartaphilus, um homem que bebia a água dos imortais e que era o produto da dialéctica inexorável entre a memória e o esquecimento, entre o desejo de viver e o limite da morte. Em sucessivas vidas que se projectam em Cartaphilus, há uma só vida a ser vivida, e tudo o que transmite faz parte dela e das relações que a partir dela são estabelecidas. Essa vida feita de várias vidas serve para procurar a força perene da palavra, o único elo que permite entender o mundo. E porque a palavra é para Cristina Campo um elemento sagrado, a liturgia tradicional, latina e gregoriana deveria ser salva – “porque a tradicional foi banida nos locais onde era compreendida e amada”. Pode parecer estranha esta defesa. Sobretudo, quando a reivindicação da liturgia tradicional tem sido feita por grupos em que o tradicionalismo prevalece sobre a compreensão dos sinais dos tempos. Vittoria Guerrini faz, no entanto, a defesa do latim em nome da coerência e da fidelidade litúrgica, com uma sólida fundamentação que a leva a admirar o rito bizantino, simbiose entre o gesto e a palavra.

Entretanto, Cristina Campo permite entendermos a uma nova luz o testemunho cristão de Simone Weil. Trata-se de um polémico prefácio (1972) assinado por Benedetto P. d’Angelo para a edição italiana de “Espera de Deus”. Segundo d’Angelo, o livro de Weil seria um “grande clássico pré-cristão”. O autor, no entanto, não era senão a própria Vittoria Guerrini, que afirmava criticamente ter faltado a Weil o contacto com os Padres Ocidentais (em especial Agostinho de Hipona), com os Padres Orientais (como Gregório de Nissa), com os monges e anacoretas dos primeiros séculos, com os ascetas e os místicos da Contra-reforma e com o esplendor do Missal, do Breviário, do Ritual e do Pontifical, “onde toda a beleza e necessidade, do metal do sino ao mínimo grão, da gota de mel à bochecha do recém-nascido, da essência destilada das flores às cortinas do leito nupcial, até ao adeus e à própria morte, são erguidas até ao seu máximo, ao seu significado divino ”. E assim Simone Weil ficou aquém do que desejaria, uma vez que não teve a oportunidade de mergulhar na sublimidade de uma procura profeticamente preparada.