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Henrique Joaquim
“A solidariedade multa-se?”
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Celebrámos por estes dias, mais concretamente no dia 20 de fevereiro, o dia mundial da justiça social instituído pela ONU em 2009 como forma de assinalar o compromisso mundial de erradicação da pobreza. Não deixa de ser curioso, num mundo tão secularizado, mais uma consagração de um dos princípios da Doutrina Social da Igreja ainda que não seja um seu exclusivo.

Ao designar o Dia Mundial, a Assembleia das Nações Unidas “reconhece a necessidade de consolidar os esforços da comunidade internacional no domínio da erradicação da pobreza e no que se refere a promover o pleno emprego e o trabalho digno, a igualdade de género e o acesso ao bem-estar social e à justiça para todos”.

Curiosamente a celebração desta data fez-me lembrar um episódio recente (por altura do dia de Carnaval) que tivemos conhecimento através da comunicação social, este não tão positivo e em larga medida espantoso: uma organização, no caso um Centro Social Paroquial, foi multada porque, ao que parece, prestou mais apoio do que tinha contratualizado com a Segurança Social local!

Paradoxal? Sim, no mínimo! Se não, reparemos: que fez esta organização se não concretizar, à sua escala claro está, o desígnio da ONU acima referido? Que fez para além de concretizar a sua missão e a sua natureza: cuidar das pessoas em especial das mais carenciadas?

Contudo, e tendo em conta a lei atualmente em vigor, a referida organização incorreu numa coima porque alegadamente não respeitou o contrato estabelecido. Não está minimamente em causa, bem pelo contrário, de que é necessário e imperioso que toda a ação seja cada vez mais coordenada para que possa ser eficaz. Muito menos está em causa que algo tem de ser feito quando uma disposição legal não respeitada.

Mas aqui chegados há uma pergunta que se impõe: afinal que conceito de justiça social temos? Uma justiça social aplicada de forma meramente legalista e tecnocrática ou a verdadeira justiça que assenta, mais que na igualdade, na equidade que não só garanta como promova a dignidade de qualquer pessoa mas em especial das mais carenciadas?

Ainda tive a esperança de que tudo tivesse sido um mal-entendido (pensei até numa brincadeira de Carnaval de muito mau gosto) mas soube-se que da primeira coima, após o recurso, houve até uma redução, mas ficou mesmo decretada uma outra coima. Pode até parecer um caso isolado e, pelo menos até à data, não se soube de mais nenhum. Contudo, tem de nos fazer refletir.

Tomar uma atitude destas é um atropelo à solidariedade e acima de tudo à dignidade das pessoas em causa, em primeiro lugar, mas também ao nosso modelo de sociedade em geral. Tomar uma medida destas é arriscar um conjunto de efeitos totalmente perversos e contraditórios. O Estado tem procurado que sejam cada vez mais as organizações locais a encontrar soluções para os problemas sociais locais mas por outro lado limita a sua autonomia e a sua liberdade de ação atropelando claramente o princípio da subsidiariedade. Já para não referir as inúmeras situações de verdadeiro incumprimento de alguns destes serviços públicos, o que seriamente coloca em causa a sua autoridade moral e mina a confiança essencial a um relacionamento que se quer de parceria e conjugação de esforços.

Num plano mais abstrato, tomar uma medida destas é não compreender a força e a mística da solidariedade que resulta do imperativo do amor ao próximo. Este imperativo não se compadece com este tipo de atitudes porque a sua natureza é resgatar a dignidade humana e promover a sua vida. A dádiva e a força que nela subjaz são anteriores e estão para além de qualquer contrato.

Bem espero que como cidadãos, e acima de tudo como cristãos, saibamos refletir e reaprender com esta situação para que se reforce na nossa consciência, e na nossa convicção, o sentido profundo da ação social e caritativa que somos chamados a concretizar, que sem dúvida deve procurar a promoção e autonomização para além da assistência, mas jamais se pode conformar enquanto houver uma pessoa que seja a necessitar daquilo que é seu por direito.