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Guilherme d’Oliveira Martins
«Diálogos das Carmelitas»
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O Teatro Nacional de S. Carlos, numa coprodução com a Cornucópia, levou à cena há pouco «Dialogues des Carmélites» de Francis Poulenc, com encenação de Luís Miguel Cintra. Celebrando-se este ano o centenário do nascimento do poeta francês Pierre Emmanuel, grande amigo de Portugal, foi muito tocante o facto de ter sido possível associar no tempo (graças a uma boa coincidência) o lançamento do livro «Liberdade da Cultura» (Gradiva, 2015), onde se recorda o papel de católicos como António Alçada Baptista e João Bénard da Costa na preparação da democracia portuguesa, designadamente com a revista «O Tempo e o Modo» e a Comissão Portuguesa do Congresso para a Liberdade da Cultura, à apresentação desta obra de grande importância, saudada por toda a crítica. É importante a ligação entre a liberdade da cultura, a abertura de alma e a espiritualidade, que têm a ver com a procura de sentidos para a vida que o tempo atual reclama. Georges Bernanos escreveu o texto que serve de base a esta obra poucos dias antes de morrer – e os temas do medo e da morte estão bem presentes, em especial no drama sentido pela irmã Blanche… A ação começa em abril de 1789, em plena revolução francesa. Blanche de la Force, jovem aristocrata parisiense, anuncia a seu Pai a intenção de entrar no Carmelo de Compiègne. A madre superiora do convento recebe-a e interroga-se sobre o porquê da decisão… Tornada noviça, Blanche vai viver os últimos dias da congregação ameaçada pelos acontecimentos políticos. A tropa invade o convento e Blanche consegue fugir. As Ordens são dissolvidas, as religiosas condenadas à morte e sobem ao cadafalso a cantar a «Salvé Rainha». Depois de muitas hesitações, angústias e dúvidas, Blanche junta-se às suas companheiras no sacrifício e aceita a morte como um dom da Graça. Bernanos põe em diálogo os sentimentos contraditórios ditados por situações limite que põe em xeque a dignidade humana (desde a fé do carvoeiro à dúvida metódica). E Blanche faz um percurso em que aprende a «ser digna do sofrimento redentor». Enquanto Constance, pura e genuína, tem uma fé inabalável, que lhe dá a confiança absoluta de que Blanche virá a juntar-se a elas.

O espetáculo levado à cena revela uma grande coragem de interrogar os limites (sem tentações confessionalistas), de articular o que une as protagonistas da peça teatral e operática, obrigando a refletir a Europa sobre os valores comuns. O hábito das carmelitas aproxima as personagens da ideia de igualdade de todas as pessoas. Na prática, a representação das 16 freiras é o símbolo de um mundo em que o tema do medo está bem presente, e em que somos chamados à coragem. Como em Paul Claudel, ou entre nós em Sophia de Mello Breyner, encontramos em Bernanos e Emmanuel uma poética de diálogo assente na espiritualidade entre as pessoas e o mundo, entre nós e os outros (a outra metade de nós mesmos), entre o tempo e a vida.

Sophia de Mello Breyner traduziu para «O Tempo e o Modo» o Canto LXVI de Pierre Emmanuel: «O silêncio está em flor / como uma macieira branca sob a lua // Oh lua / quando entre as árvores sobes / tão puro se desenha cada ramo / a eternidade é de repente tão aguda / que choramos de abandono gritamos / de alegria / enquanto a alma evaporada morre / no perfume lunar da noite branca». Que melhor do que a invocação do silêncio para podermos ouvir o mundo e os outros, assumindo o que Unamuno designava como «Agonia do Cristianismo», ou seja, a luta pelo amor, pela entrega, pela não indiferença, pela persistente procura da genuína alegria das bem-aventuranças. O tema tem muito ver com o caráter persistente e generoso do poeta francês de «La Liberté Guide nos Pas»… Sobre a espiritualidade, poderemos dizer algo de muito semelhante ao que disse Albert Béguin sobre Georges Bernanos: «o homem que todas as manhãs, ao longo de uma vida dolorosa, se comprometeu com o caminho, com a certeza no fundo do seu coração de chegar no dia certo às portas do Reino de Deus». Nesse texto sublime, em «Dialogues des Carmelites», sentimos, no fundo, nas suas diversas dimensões como a fé e a dúvida estão bem presentes à nossa beira…