Artigos |
Pedro Vaz Patto
Ser pessoa
<<
1/
>>
Imagem

Em finais de julho, um tribunal norte-americano (o Supremo Tribunal de Manhattan) decidiu a respeito de um pedido de habeas corpus apresentado pela organização The Nonhuman Rights Project (www.nonhumanrightsproject.org) em pretensa representação de dois chimpanzés, Hercules e Leo, privados de liberdade no âmbito de uma investigação científica. Alegou tal organização que esses chimpanzés deveriam ser considerados, juridicamente, “pessoas” e, por isso, titulares de direitos de liberdade. Para sustentar que são “pessoas”, invocava as capacidades cognitivas desses chimpanzés, superiores às de seres humanos em alguma fase da sua existência. A juíza Barbara Jeffes indeferiu tal pretensão, declarando que os chimpanzés não podem ser considerados “pessoas” no atual ordenamento jurídico, embora tal possa vir a verificar-se num futuro não muito distante.

Esta pretensão suscitou a reação de um outra organização, Personhood USA (www.personhood.com), que considerou estar em causa um princípio básico da civilização e da ordem jurídica. Esse princípio assenta na visão judaico-cristã da pessoa humana criada à imagem e semelhança de Deus (imago dei) e, por isso, com uma dignidade que a distingue das outras espécies animais. Essa visão alicerça uma ordem jurídica baseada nos direitos humanos.

O que importa, a este respeito, ter bem presente é que a dignidade da pessoa deriva do simples facto de ela ser membro da espécie humana, não de qualquer atributo ou capacidade que possa variar em grau ou que possa ser adquirido ou perder-se nalguma fase da existência. Depende do que ela é, não do que ela faz ou pode fazer. A dignidade da pessoa é sempre a mesma, não varia em grau conforme maiores ou menores capacidades cognitivas, não é maior nas pessoas mais inteligentes ou menor nas menos inteligentes. Não depende da raça, do sexo ou da idade; dela nenhum ser humano está excluído. Não se vai adquirindo progressivamente até à idade adulta, existe na sua plenitude desde o início da vida. Não deixa de existir pela deficiência ou pela doença, físicas ou mentais, por muito profundas que elas sejam. Não se perde com a idade avançada, a demência, ou o estado comatoso. A proteção decorrente do reconhecimento de direitos humanos justifica-se ainda mais, precisamente, quanto aos seres humanos que são mais vulneráveis, por si mesmos ou pela fase da existência por que passam (o embrião, o feto, o recém-nascido, o deficiente profundo, o demente, o doente em fase terminal, o comatoso). Não é por terem capacidades cognitivas inferiores à de animais não humanos que esses seres humanos mais vulneráveis perdem dignidade em relação a estes, ao contrário do que sustenta o filósofo Peter Singer.

Sobre esta questão, vem a propósito recordar o que afirma o Papa Francisco na encíclica Laudato Si.

Há que reconhecer o valor próprio de cada criatura, que, cada qual a seu modo, reflete sempre a «uma centelha da sabedoria e da bondade infinitas de Deus» (n. 69), porque «todo o universo material é uma linguagem do amor de Deus, do seu carinho sem medida por nós» (n.84). O Papa denuncia a incoerência de quem pretende proteger outras espécies e não o faz com tanto vigor quando está em causa a espécie humana, incluindo na sua fase embrionária (n. 90, n. 91 e n. 120); mas não contrapõe a proteção do ser humano e a proteção de outras espécies animais: «a indiferença ou a crueldade com as outras criaturas deste mundo sempre acabam de alguma forma por repercutir-se no tratamento que reservamos aos outros seres humanos. O coração é um só, e a própria miséria que leva a maltratar um animal não tarda a manifestar-se na relação com as outras pessoas» (n. 92).

Daí não deriva, porém, o esquecimento da especificidade da posição do ser humano na ordem da criação, como se fôssemos «todos iguais, todos animais»:

«A Bíblia ensina que cada ser humano é criado por amor, feito à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26). Esta afirmação mostra-nos a imensa dignidade de cada pessoa humana, que “não é somente alguma coisa, mas alguém. É capaz de se conhecer, de se possuir e de livremente se dar e entrar em comunhão com outras pessoas”. São João Paulo II recordou que o amor muito especial que o Criador tem por cada ser humano “confere-lhe uma dignidade infinita”. Todos aqueles que estão empenhados na defesa da dignidade das pessoas podem encontrar, na fé cristã, as razões mais profundas para tal compromisso. Como é maravilhosa a certeza de que a vida de cada pessoa não se perde num caos desesperador, num mundo regido pelo puro acaso ou por ciclos que se repetem sem sentido! O Criador pode dizer a cada um de nós: “Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia” (Jr 1, 5). Fomos concebidos no coração de Deus e, por isso, “cada um de nós é o fruto de um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado, cada um é necessário”» (n. 65).