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Nuno Cardoso Dias
A ofensa
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“Onde houver ofensa, que eu leve o perdão”

Oração da paz, atribuída a São Francisco de Assis

 

Tenho um enorme respeito e admiração pelo Papa. Tem sido de uma energia, de uma abertura e de uma coragem exemplares. Já tive oportunidade de o elogiar muitas vezes e precisamente por isso mais à vontade me sinto para discordar da posição que tomou quanto à liberdade de expressão.

Em primeiro lugar é preciso distinguir liberdade de expressão e moralidade na expressão. A primeira refere-se ao que pode ou não pode ser feito, a segunda ao que deve ou não deve ser feito.

Por exemplo, o Papa pode optar por um discurso informal sobre este tema e considerar natural dar um murro a quem ofender a sua mãe – foi a sua expressão literal – mas não deve fazê-lo.

Admitamos que o murro na cara foi um excesso de expressão, dentro da liberdade que lhe assiste. Era um murro metafórico, um punho caricaturado. Um punho caricaturado não ofende da mesma forma que os de carne e osso. Mas a possibilidade de ser mal-entendido é significativa. Não deveria sacrificar a clareza à informalidade. Muitos fizeram notar – e bem – que o Pai Nosso fala dos que nos têm ofendido de outra forma e que a outra face não é da mão.

Da mesma forma, é razoável que alguém procure orientar a sua conduta de forma a não provocar, não insultar, não ridicularizar. Mas é preciso entender que isto se prende com uma orientação moral – o que devemos ou não dizer – e não com a liberdade de expressão – o que podemos ou não dizer. Também no que podemos dizer tudo nos é permitido mas nem tudo nos convém. Embora seja de referir que perante muitas injustiças o dever será denunciá-las. A história da religião está cheia de figuras que foram incómodas pelo que disseram e que sentiram o dever de falar. A muitos custou a liberdade e a vida. Penso em São Sebastião, patrono do dia em que escrevo, penso em São João Baptista, mas também em Jesus, cuja vida, ensinamentos e acções ofenderam. Que desrespeitou normas da sua própria religião. Que pôs a ridículo elementos hierarquicamente bem colocados da religião a que pertencia. Provavelmente eles sentiram-se ofendidos, ameaçados, provocados, insultados. Porque outra razão o mandariam crucificar?

Francisco sublinhou que a liberdade religiosa e a liberdade de expressão são “dois direitos humanos fundamentais” e disse que, neste contexto, “não se pode provocar, não se pode insultar a fé dos outros, não se pode ridicularizar a fé".

Salvo o devido respeito – e é muito – a minha liberdade religiosa não é afectada por nenhuma provocação que sobre ela se faça (isso queriam os provocadores) e a única pessoa que pode insultar ou ridicularizar a minha fé sou eu, com as atitudes que tomar.

Mais: a minha liberdade religiosa anda sempre a par da minha liberdade de expressão. É  (também) nesta última que se inclui a liberdade de professar a minha fé ou falta dela. Onde uma é atropelada a outra também o é, invariavelmente.

A liberdade de expressão é normalmente a primeira das liberdades a ser atacada e onde ela não existe aos demais não resistem. Por isso deve ser limitada a situações absolutamente excepcionais e particularmente graves. A ofensa, por si só, não deve ser um limite à liberdade de expressão porque é sempre uma atitude pessoal de quem é ofendido. A mim não me ofende uma figura de um barbudo vestido de branco com um turbante, sobre um fundo verde e que diz que é Charlie, sobre o qual se lê que tudo está perdoado. Mas há quem se ofenda com ela. Há quem diga que aquela figura é um profeta, embora não o possam fazer por comparação porque a esse profeta, por definição, ninguém o viu representado. Há quem se ofenda até com bonecos de neve.

Há coisas que me ofendem e quanto a essas gostaria de ver as instituições reagirem energicamente. Ofende-me que se mate em nome de Deus, e nisso identifico-me perfeitamente com o Papa. Essa ofensa tanto é válida em Paris como na Nigéria, mas mais ainda na Nigéria, pela magnitude da situação e por não ser uma situação excepcional mas um estado de coisas, do qual nos chegam ecos tão abafados, pela falta de liberdade completa que ali há. Ofende-me que se usem meninas como bombas, crianças como soldados. Ofende-me que se degradem as mulheres ou qualquer ser humano, desde a sua concepção, a estatutos próximos de coisas. Ofende-me que se condenem pessoas pelos crimes de que foram vítimas, como tantas vezes acontece com a violação em certos países. Essas coisas ofendem-me. Sinto-me impotente perante elas. O pouco que posso fazer é denunciá-las, não as calar. Expressar-me, mesmo que isso ofenda alguém.