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P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Do terrorismo ao ‘direito’ à blasfémia
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Uma multitudinária manifestação de mais de dois milhões de pessoas condenou, com veemência, os atentados recentemente verificados em França. Na realidade, para além das vinte vítimas mortais, a Europa toda e o mundo inteiro ergueram-se a uma só voz para repudiar o medo que o terrorismo, a todos, quer impor.

Não é aceitável justificar o crime à conta da situação económica dos assassinos, ou do recorrente desrespeito de um dos seus alvos, o semanário Charlie Hebdo. As motivações dos criminosos não permitem legitimar o que não tem explicação. Um crime desta natureza não merece qualquer tipo de compreensão: só a sua condenação é legítima. Mas, daí a um suposto ‘direito’ à blasfémia, vai um abismo. Ou talvez não.

Há quem entenda que a blasfémia é um legítimo exercício da liberdade de pensamento e de expressão mas, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, é «um dito considerado ofensivo, ultrajante em relação à divindade ou à religião», ou um «dito ou comportamento gravemente ofensivo para com uma pessoa ou coisa digna de muito respeito» (vol I, pág. 540). Note-se que se refere sempre, expressamente, o seu carácter gravemente ofensivo. Não o diz um texto confessional, mas o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa.

Devem poder discutir-se, em liberdade, todos os temas religiosos. Em nenhuma legislação se devem punir as livres opiniões de crentes e não crentes. Não deve haver qualquer censura ou limite à liberdade de pensamento e de expressão. Daí não decorre, no entanto, nenhum direito à agressão religiosa mas sim, pelo contrário, um dever de respeito por todas as pessoas e pelas suas convicções, religiosas ou não, salvo se contrárias à liberdade dos outros cidadãos. Não pode haver lugar para os inimigos dos direitos humanos.

Se a blasfémia é uma ofensa, é pertinente que se lhe dê um tratamento jurídico análogo à injúria e à difamação. Todas as individualidades físicas e morais podem, num estado de direito, exigir que a sua dignidade seja respeitada publicamente. Se uma pessoa, ou entidade, merece essa consideração, também um crente e a sua religião devem gozar de semelhante protecção legal. Quando a dignidade de indivíduos e instituições, religiosas ou não, é posta em causa, a sua defesa não é uma questão do foro confessional, mas uma exigência ética e jurídica.

Quando, há já alguns anos, John Galliano insultou, num lugar público, um casal judeu, não consta que alguém tenha saído em defesa do estilista, ou da sua liberdade de expressão. Se tivesse troçado de Jesus Cristo e de Maria de Nazaré, os dois únicos judeus que podem ser impunemente insultados em público, ninguém, por certo, se teria atrevido a acusá-lo de anti-semitismo. E, se calhar, não teria faltado quem tivesse elogiado a sua irreverência… em nome da liberdade de expressão.

Não há nenhuma justificação para um crime hediondo, que também não pode ser instrumentalizado para legitimar a blasfémia, cujo carácter ofensivo é eticamente censurável. Não se vence a violência com violência de sentido contrário: estão a mais todas as formas gratuitas de agressão, sem excluir as verbais.

Os crentes devem aceitar a não-crença dos ateus e agnósticos e a sua legítima expressão, mas os não-crentes devem também respeitar os que têm fé. O crime, qualquer que ele seja, não admite nenhuma legitimação. A blasfémia também não. Só na aceitação de todas as pessoas e das suas circunstâncias se pode construir uma sociedade livre e solidária.