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Guilherme d’Oliveira Martins
Paulo VI e os sinais difíceis dos tempos…
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À memória do meu Amigo Fernando Melro

 

Quando o Cardeal Karol Wojtyla foi eleito para a Cátedra de Pedro adotou o nome de João Paulo, em homenagem aos dois grandes artífices do Concílio Vaticano II. Fê-lo em homenagem a um momento fundamental na vida da Igreja Católica e a duas personalidades cuja coragem e lucidez marcou esse decisivo impulso de renovação. João XXIII teve a visão profética que o levou a convocar o Concílio que, não iria concluir o Vaticano I, interrompido por razões políticas, mas rasgar novos horizontes, já que a Igreja Católica teria deixar de ser eurocêntrica, para compreender o universalismo da mundialização e para assumir uma perspetiva atual e dinâmica dos «sinais dos tempos». Os riscos eram máximos, os perigos inexoráveis, as incompreensões indiscutíveis, mas a verdade é que era indispensável abrir as janelas de par em par. E não se julgue que o gesto do Sumo Pontífice foi logo compreendido – uns desejaram que nada se mudasse, outros julgaram que seriam suficientes algumas alterações formais e um terceiro grupo acreditou na possibilidade de reais transformações. Mas foi o próprio Papa que, poucos dias antes de morrer, quis deixar um sinal claro de que haveria mesmo que mudar e que os retoques ilusórios não poderiam estar no espírito conciliar. «Pacem in Terris» surpreendeu, por isso, os Padres Conciliares, ao pôr os sinais dos tempos novos na ordem do dia, abrindo caminho a que a recusa do Esquema XVII originasse o debate sobre o Esquema XIII e a aprovação da Constituição Pastoral «Gaudium et Spes» (em íntima ligação com a noção de Povo de Deus da «Lumen Gentium»).

Já referi diversas vezes este episódio que demonstra bem a corajosa intencionalidade da decisão de S. João XXIII na convocação do Concílio Ecuménico. Hoje, volto a esta recordação para enaltecer a justiça da beatificação de Paulo VI, que compreendeu bem o testemunho que recebeu do seu antecessor, tendo garantido que as conclusões conciliares respeitassem as veredas de renovação e de inconformismo lançadas na convocação e na inauguração de tão essencial reunião magna. Hoje, meio século depois desse momento crucial para a Igreja e para o Mundo, podemos compreender que Paulo VI teve a capacidade extraordinária de não se deixar abalar pelas resistências circunstanciais (bem sentidas entre nós, por exemplo a propósito da participação no Congresso Eucarístico de Bombaim ou do reconhecimento do direito à autodeterminação das novas nações). O Papa soube assim seguir a força da encíclica «Pacem in Terris», com todas as suas consequências, e pegar no tema também atualíssimo do desenvolvimento económico e social como novo nome da paz, em «Populorum Progressio». Hoje mesmo, perante as ameaças que pairam em todo mundo contra a paz e o desenvolvimento, os ensinamentos de Paulo VI e a sua visão do mundo mantêm-se como luzeiros indispensáveis.

O magistério do Papa Francisco segue esse curso, e todos aguardamos com grande esperança os novos caminhos a abrir pelo Sínodo dos Bispos de 2014. Urge compreender o que Jean Lacroix disse, nas vésperas do Concílio: «a família não existe nem no instante, nem na eternidade, mas num tempo cuja duração se alimenta de eternidade» («Força e Fraquezas da Família», tradução de João Bénard da Costa, 1959, p. 56). Daí a necessidade de compreendermos a complexidade das relações humanas na sociedade contemporânea, entendendo que a pessoa não é feita para o sábado, mas o sábado para a pessoa. Como afirmou o Concílio, na «Gaudium et Spes»: «as transformações profundas da sociedade contemporânea, apesar das dificuldades que provocam, com muitíssima frequência revelam, de vários modos, a verdadeira natureza da instituição familiar» (cf. nº 47). E basta seguirmos com atenção os passos e os ensinamentos da Boa Nova de Jesus Cristo para dar atenção a esses vários modos, tantas vezes difíceis de ver e de entender… Quem tem olhos que veja, quem tem ouvidos que oiça.