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Guilherme d’Oliveira Martins
Desfazer-nos dos ídolos e das coisas vãs…
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O primeiro ano do pontificado do Papa Francisco aponta para um movimento de aproximação às pessoas concretas, de presença e de exigente apelo à verdade e à justiça. Uma vez eleito, em 13 de março de 2013, no segundo dia do Conclave, o Cardeal Jorge Mário Bergoglio imediatamente deu o inédito sinal de pedir, antes de conceder a bênção, uma oração do povo para o seu bispo. É um gesto inesquecível de proximidade e de amor. Tratou-se, afinal, de dizer que o verdadeiro protagonista daquele ato de testemunho era o Povo de Deus, representado na Praça de S. Pedro. Reencontramo-nos, a cada passo, com esse gesto inusitado e fundamental de Jesus Cristo quando encontrou a Samaritana junto da fonte, agindo como os seus amigos lhe tinham dito que não fizesse. Importa, afinal, dar atenção reforçada aos temas da exclusão e das periferias antropológicas – de modo que a dignidade da pessoa humana não se possa tornar uma abstração. Nós usamos essa expressão elaborada, mas o Senhor limitou-se a dirigir a palavra àquela mulher que se surpreendeu com o gesto. Esse movimento natural de inconformismo tem o significado, antes do mais, de uma preocupação de proximidade, tornando a vida e a palavra de Cristo uma resposta paciente e determinada às dúvidas, angústias e hesitações do presente. Mais do que uma proclamação, valeu um gesto inesperado de aproximação.

Há dias, o Papa dizia-nos: «o Senhor recorda-nos que nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. E isto dá-nos força, ajuda-nos na luta contra a mentalidade mundana, que abaixa o homem ao nível das necessidades primárias, fazendo-o perder a fome daquilo que é verdadeiro, bom e belo; a fome de Deus e do seu amor. Daí devermos desfazer-nos dos ídolos, das coisas vãs e construir a nossa vida sobre o essencial». Na mensagem da Quaresma, na mesma linha de apelo ao compromisso de todos, num tempo de incerteza e de injustiças, o Papa Francisco parte da Segunda Carta de S. Paulo aos Coríntios, na qual está dito que «Cristo, sendo rico, se fez pobre por nós, para nos enriquecer com a sua pobreza». E de que pobreza nos fala a mensagem? A pobreza de Cristo deve ser encarada como o seu «modo de nos amar» - visto como «o seu aproximar-se de nós, como fez o Bom Samaritano com o homem abandonado na berma da estrada». E o Papa cita Léon Bloy: «a única verdadeira tristeza é não ser santos» e a miséria é não viver como filhos de Deus e irmãos de Cristo. Voltamos sempre a Marta e a Maria. A atitude das duas completa-se, naturalmente. Cristo precisa de ambas. Mas a atitude de Maria revela-se mais eficaz, porque inesperada, interpelante, indo ao encontro da essência espiritual do amor.

Mas voltemos à mensagem. A miséria não coincide com a pobreza, falta-lhe a confiança, a solidariedade e a esperança. Importa, sim, respondermos à miséria material, à miséria moral e à miséria espiritual. Não devemos tornar-nos escravos das coisas perecíveis, não podemos ceder à tentação da soberba, não nos é permitido soçobrar à lógica do poder pelo poder. «Quando o poder, o luxo e o dinheiro se tornam ídolos, acabam por se antepor à exigência duma distribuição equitativa de riquezas». A injustiça tem de ser contrariada pelo compromisso cristão. A idolatria tem de ceder lugar a um sentido humanista da dignidade. Deste modo, «o Senhor convida-nos a sermos jubilosos anunciadores desta mensagem de misericórdia e de esperança». Eis-nos perante as ideias libertadoras de atenção e de cuidado relativamente ao nosso próximo. Devemos enriquecer-nos uns dos outros, com a prática de uma pobreza que se não confunda com a miséria e que signifique, na economia e na sociedade, sobriedade, adequação dos meios aos fins, utilização justa dos recursos disponíveis e salvaguarda do bem comum. Quando tanto se fala de saídas para a crise, percebamos as raízes desta – mais do que correr atrás do imediato, precisamos de saber lançar as redes ao mar. E, como afirma D. Manuel, Patriarca de Lisboa: «É por nós que a amizade de Cristo chegará aos outros, nos quais Ele nos espera».