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Pe. Alexandre Palma
Fé e desporto
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Misturar num mesmo discurso fé e deporto exigirá alguma ousadia. Porventura, alguma inconsciência. É que ambos definem domínios dados a paixões vigorosas. E mexer com paixões supõe sempre uma boa dose de risco. Para alguns, semelhante associação parecerá um absoluto nonsense. Nada haverá no universo da fé e no universo do desporto que permita aproximá-los assim. Admito, por isso, que alguns vejam neste binómio algo que se aproxima perigosamente do sacrilégio. Para outros, sobretudo para quantos olham os fenómenos religioso e desportivo com igual desdém, tal aproximação será bastante natural. Para estes, os dois gozarão desse célebre estatuto de «ópio do povo». Para quem assim os vê, eles mais não serão que duas sobrevivências daquela irracionalidade que a vassoura do progresso e da cultura ainda não conseguiu varrer para fora da civilização.

Eu, pelo contrário, divirto-me a pensar nas afinidades entre fé e desporto. Falo de fé como opção e como vivência; como compromisso livremente assumido e como ambiente onde se experimentam coisas únicas. Penso no desporto também num duplo sentido: como coisa de atletas, mas também de adeptos; como actividade praticada, mas também como actividade seguida de forma apaixonada. Nisto não estou completamente só. Atenda-se, por exemplo, ao facto do Pontifício Conselho para a Cultura ter criado, no final de 2011, um departamento dedicado precisamente à relação entre a Igreja e o mundo do desporto.

É mais ou menos comum salientar que essa afinidade se manifesta, de modo evidente, no campo da linguagem. Veja-se como as manchetes dos jornais ou as conversas sobre o desporto estão impregnadas do imaginário religioso: desde estádios transformados em «catedrais» (em rigor, apenas um o é!) aos trocadilhos mais óbvios com os nomes dos seus protagonistas. Mas o inverso também ocorre. Não era apenas o apóstolo Paulo quem se valia do imaginário desportivo (cf. 1Cor 9, 24). Também com esse imaginário se preenchem hoje não poucas pregações e propostas pastorais. Veja-se como, quer a caminhada crente quer o desafio desportivo, são uma constante superação dos limites. O crente, movido pela fé, chega onde não pensava poder chegar: a uma vida total e a gestos que vão além do ser natural. Assim também com o atleta, em luta mais com os seus próprios limites que com o adversário a vencer, a distância a percorrer ou o tempo a bater. Veja-se, ainda, como a religião e o desporto unem pessoas com laços insuspeitados. No campo de jogo, dá-se tudo por um colega de equipa. Na bancada, abraça-se o estranho sentado a nosso lado como se de um íntimo de sempre se tratasse. Algo que só vejo acontecer quando nas igrejas saudamos esse estranho como um irmão. É sintomático que este tenha sido um aspecto da experiência religiosa que comoveu o ateu A. de Botton.

Confesso, porém, que não só por aí me levam estas divagações. Penso noutras facetas desta afinidade. Talvez porque eu seja mais vezes adepto que atleta, pergunto-me: o que me leva a ser deste clube e não daquele? O mais estranho é que nada o parece explicar completamente. Há, por certo, razões de infância (a influência de um pai, por exemplo). Há razões de ordem afectiva (aprendeu-se a gostar deste e não doutro clube; a pertença a um dado grupo). Há, ainda, motivos mais razoáveis (é o clube da minha terra; é um clube vencedor; etc). Estes são elementos válidos, que tornam plausível essa identificação com um clube, mas que não explicam completamente o fenómeno. Há nele ainda qualquer coisa de inexplicável. Algo de semelhante parece ocorrer com a fé. Também na fé há razões de infância. Também há razões de ordem afectiva. Também há razões da razão. Tudo isso interpreta e descreve o fenómeno, mas não o explica. Na fé, há ainda um não sei quê que excede todas as razões que podemos elencar. Sei bem que falo de realidades de natureza muito distinta. Mas a persistência deste excesso afim à fé e ao do desporto talvez nos ajude a perceber que a nossa identidade é mais do domínio da graça que da pura razão.

 

Nota: belo exemplo do uso do imaginário desportivo na proposta da fé é a presente proposta After Rio do Sector da Animação Vocacional do Patriarcado de Lisboa (http://www.vocacoesxpto.net/afterrio/).