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António Bagão Félix
O meu silêncio*
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Se eu tivesse que escolher uma árvore para significar a sublime pureza do silêncio, seria a oliveira que, indiferente ao calor sufocante ou ao frio penetrante, sobrevive na austeridade do seu ser.

Se eu tivesse que escolher uma cor para exprimir a decantação do som feito silêncio, seria esse paradoxo do branco escuro que nos acolhe na suavidade do branco e nos sossega na nostalgia do escuro.

Se eu tivesse que escolher um tempo para pintar a purificação do silêncio, seria o Outono com as suas sombras e a despedida multicolor e compassiva das folhas.

Se eu tivesse que escolher os momentos para o pleno usufruir do silêncio nas vinte e quatro horas de cada dia, seriam o enternecimento do adormecer e a suavidade ainda que instantânea do acordar.

Se eu tivesse que escolher um sentimento para compreender o ágape do silêncio, seria o amor maternal para com a criança que, nascida no ventre, se prepara para a vida.

Se eu tivesse que escolher um nome de mulher para significar o silêncio na oração, seria Maria e depois adormeceria envolto na sua tranquilidade.

Se eu tivesse que escolher uma música para partilhar o som do silêncio, seriam os intervalos de respiração no meio da exaltação da abertura Egmont de Beethoven.

Se eu tivesse que escolher um som para traduzir o silêncio do mistério da vida, seria o do choro de uma criança indefesa no meio da violência gratuita.

Se eu tivesse que escolher um mineral que me transmitisse o código genético do silêncio, não seria o do silêncio de ouro, mas o silêncio agreste, telúrico e puro do granito.

Se eu tivesse que escolher uma idade da vida para exaltar o valor humano do silêncio, seria aquela em que o som omnipresente mais asfixiante se torna.

Se eu tivesse que escolher o silêncio da alegria, seriam tão só as palavras não ditas num olhar de afecto serenamente radioso.

Se eu tivesse que escolher o silêncio da harmonia, seria o da reconciliação do futuro com o da purificação da memória do passado, no cruzamento do ruído da rotina.

Se eu tivesse que escolher o silêncio do desespero, seria o do cair das lágrimas depois de já não se terem na imensidão do que foram.

Se eu tivesse que escolher o silêncio da verdade, seria apenas ela, a verdade filtrada pela mudez, a verdade dos inocentes.

Se eu tivesse que escolher o silêncio do medo, seria o do vulcão da coragem de o poder ter.

Se eu tivesse que escolher o silêncio da saudade purificada pela distância da ausência, seria o da solidão da confissão suprema.

Se eu tivesse que escolher o silêncio de um sonho, seria o da serenidade de ele já não o ser.

Se eu tivesse que escolher o silêncio da esperança, seria sempre o da esperança do silêncio.

Se eu tivesse que escolher o silêncio da felicidade, seria o do choro da Natividade do Deus Menino em Belém universal.

Se eu tivesse que escolher o silêncio dos silêncios, seria o deserto como antecâmara da eternidade na quietude do tempo e na serenidade do encontro.

Se eu tivesse que escolher uma palavra – só uma – para traduzir a plenitude do silêncio, seria adeus que é a forma sincopada de nos dedicarmos a Deus.

Se eu tivesse que escolher o meu silêncio…

 

*(Adaptado de texto que escrevi para o livro “Um minuto de silêncio”, da editora “Guerra e Paz”)