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Guilherme d’Oliveira Martins
Dom e oportunidade
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Falo-vos de um livro que transcreve uma entrevista de António Marujo que corresponde a um encontro muito fecundo entre os Padres Ramón Cazallas e António Rego. Li-o com muito gosto e proveito espiritual e intelectual. Em “Quando a Igreja desceu à terra” (Lucerna, 2013) há uma atitude orientada para o futuro. Há muito por fazer. O Concílio Vaticano II deve ser entendido de forma dinâmica: “O sonho e a ousadia de João XXIII lançaram a Igreja num diálogo aberto com a modernidade”. E agora não podemos pensar este impulso como se ele se mantivesse imutável há cinquenta anos. É no tempo de hoje que temos de ouvir o Papa Francisco a fazer-nos compreender que não podemos responder às pretensões dos nossos netos com as audácias dos nossos avós, como gostava de dizer Emmanuel Mounier. “A Igreja quando fica fechada adoece e quando sai pode ser atropelada; prefiro uma Igreja atropelada a uma Igreja doente”… – diz o Papa. A metáfora significa apenas isto: temos de sair, de ir para junto das pessoas, mesmo correndo o risco de ter um acidente… É extraordinário lembramo-nos de como João XXIII, pouco antes de morrer, legou ao Concílio e ao mundo a encíclica Pacem in Terris, decisiva para animar o “Esquema XIII” (que viria a ser a constituição Gaudium et Spes), colocando os “sinais dos tempos” na ordem do dia, para abrir os horizontes de mudança, com fidelidade à mensagem de Jesus Cristo. Se não fosse essa persistência, a constituição Gaudium et Spes teria ficado pelo caminho… Infelizmente, a Pacem in Terris continua por cumprir – e deve dizer-se que o Papa Francisco repõe, na força dos nossos dias, a atualidade desse apelo lancinante.

Há que tirar consequências de tudo isto. O acontecimento é nosso mestre interior. “Agora, a Igreja é um mistério, no qual o povo de Deus vem primeiro e só depois a hierarquia. E é este povo que nos interroga e nos interpela e é a ele que nos devemos dedicar”, como diz o Padre Ramón Cazallas, que acompanhou o Concílio em Roma enquanto estudante. E a luz do mundo (lumen gentium) é Cristo, sendo a Igreja o reflexo dessa luz extraordinária. Eis por que razão os cinquenta anos do Concílio Vaticano II não podem ser um revivalismo, mas sim um desafio de novas respostas. Por exemplo, não explorámos ainda plenamente o papel dos leigos e a colegialidade na Igreja. Basta lembrarmo-nos da última ceia e dos Atos dos Apóstolos. Como afirma o Cónego António Rego “o leigo tem a sua cidadania que não lhe advém do Papa nem dos bispos, mas do sacramento que recebe, que é o batismo”. Daí que a sinodalidade seja fundamental, como método e como modo de viver, de maneira que a Igreja seja fermento na massa. Este desafio não pode ser esquecido.

Há pouco o Sumo Pontífice disse algo que é muito mais importante do que pode parecer à primeira vista: precisamos de pensar teologicamente o papel da mulher na Igreja – uma vez que estamos ainda muito desatentos ao episódio de Marta e de Maria, sendo que o testemunho de ambas é fundamental para o presente e para o futuro. Leia-se com atenção a extraordinária entrevista dada pelo Papa às revistas da Companhia de Jesus, publicada entre nós pela Brotéria. O tema dos ritos e da diversidade é também de grande premência. Trata-se de conhecer o Evangelho e de comunica-lo aos diferentes povos, tendo em conta a sua cultura. Tanto por fazer também aí…

Devemos, no fundo, ser mais “testemunhas do que mestres” – como afirmou Paulo VI. E aqui está a dificuldade. Temos sempre a tentação de pormo-nos nas nossas tamanquinhas muito seguros de nós mesmos… E só temos a perder com isso. “Os sistemas da economia e da política devem ser reinventados porque os povos são completamente deixados de lado. Há uma crise profunda nas democracias atuais e até nos sindicatos”, insiste o Padre Ramón Cazallas. Os sinais dos tempos obrigam-nos a compreender o significado das Bem-aventuranças como exigências de agora! O Concílio foi um dom de Deus – urge compreendê-lo assim. E este diálogo permite-nos cuidar de muitas sementes que ainda estão por germinar e que temos de lançar à terra…