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Pedro Vaz Patto
O Evangelho da vida
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Foi comemorada recentemente em Roma a encíclica de João Paulo II Evangelium Vitae, sobre o valor e a inviolabilidade da vida humana. Nesta encíclica são condenados, de forma inequívoca, o aborto e a eutanásia. Os efeitos do aborto hoje são aí comparados às violações dos direitos dos trabalhadores no século dezanove, que levaram à publicação da primeira das encíclicas sociais, a Rerum Novarum: hoje são as vítimas do aborto as mais vulneráveis e merecedoras de protecção, como o eram então os trabalhadores.

Mas, ao contrário de acusações que por vezes se formulam, ou do que poderá por vezes parecer, as exigências do magistério da Igreja no âmbito da protecção da vida, não se limitam às fases inicial e terminal da vida, dizem respeito ao percurso de toda a existência humana, e impõem uma coerência que ultrapassa as fronteiras das ideologias de direita ou de esquerda.

Algumas questões em debate na atualidade revelam isso mesmo.

Sobretudo nos Estados Unidos, é tema de discussão a regulação da posse de armas pelos cidadãos. É muito forte na cultura norte-americana a ideia de que a posse de armas pelo cidadão comum é uma exigência da defesa dos seus direitos, que não pode ficar dependente da atuação do Estado. Mas essa mentalidade gera um círculo vicioso de cultura de violência, como se à difusão de armas que podem agredir se devesse responder apenas com a difusão de armas para as pessoas se defenderem dessas agressões (chega a propor-se que os professores andem armados para evitar as carnificinas em escolas que periodicamente fazem notícia). Alega-se também que o perigo não vem das armas em si, mas das pessoas que as utilizam.

A minha experiência nos tribunais diz-me como é enganadora esta última afirmação. Em muitas situações, a posse de uma arma origina mortes que nunca ocorreriam se essa posse não se verificasse, pois, nem o conflito em causa, nem a personalidade do agente, levariam a tal. A experiência de muitos países (a começar pelos Estados Unidos) também revela que a multiplicação da posse de armas pelos cidadãos se traduz num aumento da criminalidade violenta, não havendo formas de garantir em absoluto que uma arma serve apenas para defesa (e, mesmo quando assim é, há sempre o risco de essa defesa ser desproporcional, ou provocar a morte do agressor quando está em causa apenas a defesa de bens materiais).

Em suma, há que inverter o círculo vicioso da violência com a difusão de uma cultura de paz, que supõe restrições à posse de armas pelos cidadãos. Isso mesmo vem sendo defendido pelos bispos norte-americanos, contra uma corrente política poderosa que, influenciada pela referida mentalidade, mas sobretudo pelo lobby dos comerciantes de armas, tem frustrado quase todas as tentativas de inverter esse círculo vicioso.

Também nos Estados Unidos está na ordem do dia a discussão em torno da legitimidade moral dos ataques seletivos a pessoas suspeitas de terrorismo através de aviões telecomandados (os chamados drones). Esta prática vai-se generalizando cada vez mais e é aceite por políticos de todos os quadrantes. Aponta-se-lhe a vantagem de não ser letal para quem à distância comanda a operação e de, pela sua precisão, evitar os danos colaterais sobre civis que comportam outras operações. Na prática, estes danos continuam a verificar-se (o que tem originado muitos protestos), sendo que também são frequentes os erros de identificação dos próprios alvos.

Mas a questão ética que a este respeito se coloca é a de que não estamos perante uma uso da força em legítima defesa perante um ataque terrorista (em execução ou iminente), estamos perante uma punição, fora de qualquer das garantias judiciais próprias de um Estado de Direito, de uma pessoa suspeita de terrorismo assim executada da forma mais sumária (a até desleal, na perspetiva das virtudes militares tradicionais). É verdade que vão sendo emitidas instruções no sentido de recorrer a estas execuções apenas quando se verifique a iminência de um ataque e não haja alternativas, mas trata-se de uma proclamação retórica, pois os alvos são visados apenas porque foram identificadas como pessoas a abater e nessa qualidade representariam sempre um perigo supostamente iminente (mesmo que estejam a dormir).

Pois também sobre a legitimidade desta prática se pronunciaram recentemente os bispos norte-americanos (tal como a Comissão Justiça e Paz alemã)

Muitas outras questões relativas à defesa abrangente da vida poderiam suscitar-se: desde o acesso universal a determinados medicamentos, à fome provocada pela especulação dos preços de bens alimentares, ou outras.

Em todos estes casos se exige a coerência de quem quer seguir o Evangelho da Vida, de quem acredita em Deus que é fonte de Vida e em Jesus Cristo, que «veio para que todos tenham Vida e a tenham em abundância».