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Nuno Cardoso Dias
Dia europeu sem carros
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No início do ano morreu o meu irmão. Muito novo, muito próximo, muito repentinamente. De tudo isso espero falar noutra altura. Nunca pensei que o luto também se fizesse pelo corpo, mas a verdade é que passei a ter a necessidade de andar, de andar muito. Dava-me vontade de sair a andar e não parar. Era uma fuga, talvez, mas era também um momento de recolhimento. Muitas vezes era uma meta física bastante para não pensar em nada, outras vezes um tempo de oração. Por vezes foi um tempo dedicado, de diálogo com os que viviam o mesmo luto, fossem os meus pais ou os meus filhos.

O que essas caminhadas me deram - me dão - não se resume ao luto. Para quem (ainda) tem excesso de peso e vê morrer de um momento para o outro alguém tão próximo, cuidar de si e da sua saúde torna-se uma necessidade presente e não um desejo futuro. Daí veio o cuidado com a alimentação. Mudam-se os hábitos alimentares mas não as quantidades que se cozinha e de repente a comida dura e dura e dura. Percebemos o quanto desperdiçamos, mesmo que comamos tudo o que nos servimos, se nos servimos demais.

Por outro lado, a sensação de liberdade que ganhei é impressionante. Vivo numa cidade pequena e hoje atravesso-a facilmente de um lado ao outro, a subir ou a descer, com uma autonomia em relação aos transportes que apenas conhecia da nostalgia dos mais velhos, de quando eram novos e andavam tantos quilómetros para ir à escola.

Quando o meu filho mais velho foi para os Escuteiros, na primeira saída que fizeram teve de ser transportado às cavalitas, de tão cansado ficou. Hoje em dia, se nos despachamos mais cedo, o prémio é irem a caminhar para a escola, se não for todo, pelo menos parte do caminho. E sim, é um prémio, não é um castigo, porque aquele tempo é muitíssimo bem passado. Hoje em dia imagino que nos escuteiros façam as saídas no grupo da frente, sem se queixar. Digo isto porque quando fazemos percursos pedestres é aí que vão também, para incredulidade de quem os organiza. Falo nisto porque noto que nem sempre estes grupos são, à partida, acolhedores para famílias com filhos pequenos. É um preconceito que pode e deve ser ultrapassado, se às famílias for dada oportunidade de ganhar ritmo de caminhada.

Outra coisa que notei é o quanto as cidades estão mal preparadas para os seus peões. Passeios que acabam num baldio, porque o construtor ainda não construiu aquele quarteirão (o alcatrão, ali ao lado, não acaba, mas o passeio é tantas vezes o parente pobre da via de trânsito), mobiliário urbano a atravancar o caminho de quem passa, buracos, degraus, desníveis, passeios sem continuidade, porque não foram feito para andar, mas apenas para cumprir regulamentos (que tantas vezes persistem em não cumprir) e, claro, o estacionamento de carros em cima do passeio, tão normal como dois peões parados a conversar no meio do alcatrão.

O meu irmão deixou-nos muito. Mas uma das coisas a que mais se dedicou foi à mobilidade condicionada. Não era a preferência pelo mais fraco que o movia. Era a noção de que todos somos fracos de alguma maneira e que soluções de qualidade incluem todos, são benéficas para todos. Uma solução confortável e autónoma para alguém numa cadeira de rodas é - tem de ser - uma solução confortável para uma pessoa que torceu o pé, para um cego, para alguém de maior idade, com problemas de locomoção, para alguém que vem das compras com alguns sacos na mão, para uma grávida, para uma família com um bebé ao colo, ou com um bebé num carrinho ou para um filho mais velho que ainda tenha as pernas curtas.

Reencontrei este pensamento profissional do meu irmão nas minhas caminhadas e percebi que uma das coisas que nos faz ter comportamentos menos saudáveis é a falta de condições para uma prática saudável. Onde os passeios são largos, seguros, desimpedidos, eu vejo mais pessoas a caminhar, mesmo que os caminhos sejam a subir. Eu que sempre pensei que se andasse menos a pé e de bicicleta em Lisboa por causa das sete colinas, comecei a procurar os caminhos mais exigentes para o meu exercício e às vezes os mais eficientes para as deslocações utilitárias.

Vou escusar-me a responder à pergunta sobre o que é que tudo isto diz a um cristão, porque é dever do cristão pôr as mãos na massa, descer ao concreto e procurar o melhor para a sua cidade, para si e para o mundo. A saúde, o uso racional dos recursos, a inclusão, o acolhimento não nos são indiferentes. Se tem dúvidas sobre isto vá dar uma volta pela sua cidade. Se lhe ganhar o gosto, talvez queira experimentar o passo-a-rezar (www.passo-a-rezar.net). Vai ver que estamos todos na mesma caminhada.