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Pe. Alexandre Palma
Deserto: passagem e estação
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O cristão tem no deserto um lugar incontornável da sua experiência de fé. O mapa de uma vida com Deus (esse que nos traça onde Ele está) não nos conduz apenas aos jardins onde a vida irrompe espontânea e bela, suave e aprazível. A vivência da fé sabe que são seus também espaços de aridez e secura. O caminho da fé compõe-se também de lugares onde a vida se faz dura e pede um combate. Negá-lo seria desconhecer não apenas o que nos ensinam os grandes mestres da vida espiritual, mas também não prestar a devida atenção ao que podemos ver em nós e ao nosso redor. A estrada da fé não é sempre plana nem rectilínea. Não poucas vezes ela acrescenta mesmo sobressaltos à já de si exigente aventura da vida. O deserto é, no imaginário cristão, o lugar simbólico deste momento em que a fé se faz difícil e onde não apenas se luta por Deus, mas onde aqui e além se luta com Deus.

A grande narrativa bíblica vê prevalentemente o deserto como um lugar de passagem. Deve atravessá-lo o Povo, cumprindo uma etapa essencial na sua passagem da escravidão para a Terra Prometida. Devem prová-lo muitos a quem Deus chama para enviar (Moisés, David, profetas; o próprio Jesus). Ainda que temporárias e transitórias, são sempre duras essas passagens. O deserto é lugar de enamoramento, mas também de rebelião; de aliança, mas também de crise. Ele é o negativo do jardim original em que o Criador havia dado vida ao género humano. Nele se condensa todo o dramatismo da nossa existência perante Deus. O deserto torna-se, portanto, o lugar simbólico da nossa condição histórica e atravessá-lo mostra-se etapa necessária para uma vida que tenha Deus não só na sua origem (como seu Criador), mas que O tenha ainda mais como seu fim (como seu Redentor). O deserto é, no fundo, um lugar de Páscoa.

A antiguidade cristã viu sedimentar-se ainda uma outra forma de integrar o deserto no mapa da experiência cristã. De lugar de passagem, o deserto passou também a ser habitado por alguns como estação permanente de vida cristã. Já antes do séc. IV, monges na zona do Egipto quiseram fazer do deserto, esse lugar de morte, um lugar onde a vida vence. Vivendo no deserto, humanizavam-no. No fundo, plantavam a semente da Páscoa na aridez do deserto, essa fronteira extrema da morte. Há ainda aqueles, de ontem como de hoje, para quem as provações do deserto crente adquirem contornos de uma estação prolongada de vida. Também esses, sobretudo esses inscrevem o deserto no mapa cristão como lugar da incessante procura de Deus.

O deserto está, pois, inscrito como um dos lugares da topografia da experiência cristã. Nele a verdade do que somos suplanta qualquer disfarce. Um tal habitat parece devolver-nos à nossa justa medida. Nele parece que só poderemos balbuciar: «que é o homem Senhor para que Vos lembreis dele?» (cf. Sl 8). Em tão inóspito meio e perante a agressividade dos seus elementos ninguém duvidará que a vida é um constante milagre. No deserto é pois (ainda) mais claro que, como dizia S. Teresa de Lisieux, «tudo é graça». Para aí nos convida este tempo de Quaresma. Seja como passagem seja como estação, desçamos ao deserto. Por ele passa o caminho pascal da Aliança de Deus.