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Guilherme d’Oliveira Martins
Um apelo à ação: «Laudate Deum»
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Oito anos depois da publicação da carta encíclica Laudato si’, o Papa Francisco assinou no dia de S. Francisco de Assis, 4 de outubro, a Exortação Apostólica Laudate Deum, onde regressa ao cuidado do maltratado planeta, exprimindo profunda preocupação pela nossa casa comum. Infelizmente, “não estamos a reagir de modo satisfatório, pois este mundo que nos acolhe, está-se esboroando e talvez aproximando-se dum ponto de rutura” (LD, 2). No fundo, o impacto da mudança climática prejudicará cada vez mais a vida de muitas pessoas e famílias. Estão em causa a saúde, o emprego, o acesso aos recursos, a habitação e as migrações forçadas. Numa palavra, «o nosso cuidado pelo outro e o nosso cuidado com a terra estão intimamente ligados» (LD, 3). A verdade é que uma reduzida percentagem da população mais rica do planeta «polui mais do que a metade mais pobre de toda a população mundial». E a emissão dos países mais ricos é muitas vezes superior à dos mais pobres. «Como esquecer que a África, que alberga mais de metade das pessoas mais pobres do mundo, é responsável apenas por uma mínima parte das emissões no passado?» (LD, 9). Nestes termos, para o Papa Francisco, é urgente uma visão alargada, que permita admirar as maravilhas do progresso, mas também prestar atenção a outros efeitos que, provavelmente há cem anos, nem sequer podiam ser imaginados. Tudo o que se nos pede tem a ver com a herança que deixaremos às gerações futuras. E a pandemia Covid-19 veio confirmar que a relação da vida humana com os outros seres vivos e com o ambiente, mostra que aquilo que acontece em qualquer parte tem repercussões sobre todo o planeta. Como reafirma o Papa: «tudo está interligado» e «ninguém se salva sozinho» (LD, 19).

Mais do que o velho multilateralismo, trata-se hoje de redesenhá-lo e recriá-lo, devendo reconhecer-se que «muitos grupos e organizações da sociedade civil ajudam a compensar as debilidades da Comunidade Internacional, a sua falta de coordenação em situações complexas, a sua carência de atenção relativamente a direitos humanos fundamentais» (LD, 37). Assim, o princípio de subsidiariedade deve aplicar-se como modo de articulação entre o local e o global. De facto, o mundo torna-se tão multipolar e tão complexo que é necessário um quadro diferente para uma cooperação eficaz. Não basta pensar nos equilíbrios de poder, insiste o Papa, há novos desafios ambientais, sanitários, culturais e sociais, para consolidar o respeito dos direitos humanos, dos direitos sociais e o cuidado da casa comum. São, assim, necessários espaços de diálogo, consulta, arbitragem, resolução dos conflitos, supervisão e, em resumo, uma maior «democratização» global. «Deixará de ser útil apoiar instituições que preservem os direitos dos mais fortes, sem cuidar dos direitos de todos» (LD, 43).

Há um caminho percorrido pelos cerca de 190 países que se reúnem periodicamente para enfrentar a questão climática. Na Conferência do Rio de Janeiro de 1992 foi adotada a Convenção-Quadro sobre as Alterações Climáticas, que entrou em vigor em 1994. Infelizmente, as Conferências de Partes (COP) não têm obtido os resultados esperados. No entanto, a COP3 de Quioto (1997), fixou como objetivo a redução das emissões de gás com efeito estufa, na sua totalidade, em 5% relativamente a 1990, mas a data-limite de 2012 não foi cumprida. O Acordo de Paris (2015) apresentou um objetivo importante a longo prazo: manter o aumento das temperaturas médias globais abaixo dos 2 graus centígrados relativamente aos níveis pré-industriais, apostando em todo o caso a descer abaixo de 1,5 graus. E está-se a trabalhar para consolidar procedimentos concretos de monitorização com critérios gerais para confrontar os objetivos dos diferentes países. A COP27 de Sharm El Sheikh (2022) viu-se ameaçada pela invasão da Ucrânia, que causou uma grave crise económica e energética, mas reconheceu-se que os combustíveis fósseis ainda fornecem 80% da energia mundial e a sua utilização continua a aumentar. Numa procura clara de soluções positivas, o Papa Francisco afirma que “se temos confiança na capacidade do ser humano transcender os seus pequenos interesses e pensar em grande, não podemos renunciar ao sonho de que a COP28 no Dubai leve a uma decidida aceleração da transição energética, com compromissos eficazes que possam ser acompanhados de forma permanente». Esta Conferência pode ser um momento de viragem, comprovando a seriedade do processo iniciado em 1992; “caso contrário, será uma grande desilusão e colocará em risco quanto se pôde alcançar de bom até aqui” (LD, 54).

A Exortação Apostólica convida todos a fazer um percurso de reconciliação com o mundo que nos alberga e a enriquecê-lo, exigindo-se “soluções mais eficazes”, que não virão só dos esforços individuais, mas sobretudo das grandes decisões da política nacional e internacional. Assim, “evitar o aumento de uma décima de grau na temperatura global poderia já ser suficiente para poupar sofrimentos a muitas pessoas”. Mas, “não há mudanças duradouras sem mudanças culturais, sem uma maturação do modo de viver e das convicções da sociedade; não há mudanças culturais sem mudança nas pessoas” (LD, 70). E “os esforços das famílias para poluir menos, reduzir os esbanjamentos, consumir de forma sensata poderão estar a criar uma nova cultura. O simples facto de mudar os hábitos pessoais, familiares e comunitários alimenta a preocupação pelas responsabilidades não cumpridas pelos setores políticos e a indignação contra o desinteresse dos poderosos. Note-se, pois, que, mesmo se isto não produzir imediatamente um efeito muito relevante do ponto de vista quantitativo, contribui para realizar grandes processos de transformação que agem a partir do nível profundo da sociedade”. «Deus uniu-nos a todas as suas criaturas. Contudo o paradigma tecnocrático pode isolar-nos daquilo que nos rodeia» (LD, 66). Eis o que importa lembrar.

 

Guilherme d’Oliveira Martins