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Guilherme d’Oliveira Martins
As primeiras testemunhas
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Muitas vezes esquecemo-nos que as primeiras testemunhas da Ressurreição de Jesus Cristo foram as mulheres. Compreende-se bem que o Papa Francisco afirme: “Eu sofro quando vejo na Igreja que o papel de serviço da mulher desliza para um papel de servidão”. De facto, “quando se deseja que uma mulher consagrada faça um trabalho de servidão desvaloriza-se a vida e a dignidade humana e em especial da mulher como pessoa. Sua vocação é o serviço: serviço à Igreja, onde quer que esteja. Mas nunca a servidão!”. É necessário, deste modo, que a mulher “não seja, por exigências económicas, forçada a um trabalho pesado” e devendo considerar-se, até pelas qualidades de atenção e cuidado, que “os compromissos da mulher, em todos os níveis da vida familiar, são um contributo incomparável à vida e ao futuro da sociedade”.

As graves lacunas que ainda existem são uma injustiça intolerável, como tem afirmado o Papa, salientando o inaceitável preconceito que permite as desigualdades, as discriminações, o fenómeno da violência e a falta de acesso à educação por parte das mulheres: “infelizmente, ainda hoje, cerca de 130 milhões de jovens mulheres no mundo não vão à escola. E o certo é que não há liberdade, justiça, desenvolvimento integral, democracia e paz sem educação”. Só com plena igualdade de oportunidades as mulheres poderão contribuir para um mundo melhor de paz, de inclusão, de solidariedade e de sustentabilidade integral. Mas persistem as resistências, que, apesar de tudo, não impediram o Papa de nomear 17 mulheres para várias funções na reforma da Cúria romana. É um começo. Contudo, como afirmou Nathalie Becquart, religiosa, especialista em Eclesiologia, subsecretária-geral do Sínodo 2023-2024: “Não basta que as mulheres ocupem posições de primeira linha na Santa Sé. É o próprio mundo em crise que precisa realmente de liderança feminina”.

Como lembrou há pouco António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas: “Em todo o mundo, o progresso dos direitos das mulheres está a desaparecer diante dos nossos olhos. Segundo as previsões mais recentes, ao ritmo atual, serão necessários mais 300 anos para alcançar a plena igualdade de género. Atualmente, a sucessão de várias crises, desde a Guerra na Ucrânia à emergência climática, afeta em primeiro lugar e de forma mais dura as mulheres e as jovens. E como resultado do retrocesso mundial da democracia, os direitos das mulheres sobre os seus corpos e sobre a autonomia das suas vidas estão a ser questionados e negados. Duas estatísticas evidenciam claramente o nosso fracasso: a cada dez minutos, uma mulher ou jovem é assassinada por um membro da família ou por um parceiro íntimo. E a cada dois minutos, uma mulher morre durante a gravidez ou o parto. A maioria destas mortes é perfeitamente evitável”. E assim temos de nos comprometer a fazer melhor. “Precisamos de reverter estas tendências alarmantes e apoiar as vidas e os direitos das mulheres e das jovens em todos os lugares”.

É altura de as mulheres deixarem de ser apenas hóspedes da vida cristã ou da vida em sociedade, para passarem a ser participantes ativas nos diversos domínios da vida social e eclesial. E o papel das mulheres na teologia tem de ser mais valorizado, para que todos compreendam melhor os fundamentos da igualdade e da diferença. Assim entenderemos os limites e os mistérios. É um caminho gradual, mas corajoso, que tem de ser posto em prática. Urge compreender-se em plenitude a noção de Povo de Deus, como realidade plural em caminho, com espírito de aperfeiçoamento e de mudança. “A cada qual se concede a manifestação do Espírito em ordem ao bem comum” (I, Cor.12,7). E falamos de todos os seres humanos. A palavra todos é essencial, não como massa indistinta, mas como reunião de todos e de cada um, como seres irrepetíveis e singulares. Todos “são chamados ao novo Povo de Deus. É por isso que este Povo, permanecendo uno e único, deve dilatar-se até aos confins do mundo inteiro e em todos os tempos, para se dar cumprimento ao desígnio de Deus” (Lumen Gentium, 13). E assim este Povo de Deus “estende-se a todos os povos da terra”. A liberdade de consciência e a liberdade religiosa permite, assim, fortalecer o respeito mútuo a partir das bem-aventuranças no seio deste povo messiânico que tem por cabeça Cristo e “tem por condição a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos corações habita o Espírito Santo como em seu templo” e “tem por lei o mandamento novo: amar como Cristo nos amou (Jo. 13,34). Começado na terra pelo próprio Deus, visa a redenção universal, e é enviado a todo o mundo e a todos, qual luz desse mundo e sal da terra (Mt. 5, 13-16). Entendamos, assim, as primeiras testemunhas como sinal de exigência e responsabilidade.

 

Guilherme d’Oliveira Martins