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Guilherme d’Oliveira Martins
Valores e religiosidade
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A publicação de “Valores e Religiosidade em Portugal – Comportamentos e Atitudes Geracionais” (Afrontamento, 2022) do Cónego Eduardo Duque constitui oportunidade para refletirmos sobre a necessidade de compreender a importância dos valores éticos e religiosos na sociedade contemporânea. Importa recordar o que Hermann Broch (1886-1951) afirmou sobre o “vazio de valores”, que afeta a sociedade contemporânea e os seus efeitos na fragilização comunitária. Por outro lado, Charles Taylor (1931) na sua análise sobre a “Era Secular” (2007) distingue três formas de secularização: a religião como questão privada e a sua ausência nos espaços públicos, o abandono das convicções e práticas religiosas e a ocorrência redutora de um humanismo antropocêntrico. Esta tripla dimensão leva a uma alteração na afirmação do fenómeno religioso, interna e externamente – centrando-se Taylor numa perspetiva intrarreligiosa. Neste sentido, a intensidade da secularização está ligada ao modo como a religião se manifesta na sociedade, sendo um fenómeno complexo. Há, assim, novas condições para a afirmação das crenças e convicções religiosas, para a ocorrência de novas considerações e contextos religiosos, bem como para novos questionamentos morais e espirituais, muitas vezes contraditórios. Deste modo, importa dar ênfase a questões como o “contexto de compreensão”, a perceção da “plenitude” e o sentido da própria noção de “religião”. Neste último termo, temos de recordar a dupla etimologia da palavra: como elemento de ligação (“religare”), essencial à coesão, por contraponto ao “vazio”, de que fala Broch, ou ao “egoísmo possessivo”, que constitui para Taylor um dos fatores do “mal-estar da modernidade”, e como fator de reflexão e de conhecimento (“relegere”), para que a sociedade possa pensar-se, no sentido de uma ética de realização pessoal e de partilha comunitária.

 

Na obra de Eduardo Duque, encontramos a preocupação de considerar um tempo de crescente complexidade, com importância significativa dada ao papel desempenhado pela educação, como modo de reduzir resistências de integração e de respeito plural, com atenção à racionalidade funcional e ao reconhecimento de valores como a utilidade, a eficácia e o pragmatismo,  mas também ao desencanto da modernidade e à ocorrência de um pensamento aberto à multiplicidade de perspetivas, capaz de integrar e de dialogar. Contudo, essa pós-modernidade em sido caracterizada por uma deificação do consumo, como se o poder da imagem se tornasse uma continuidade da cegueira do positivismo.

 

Paralelamente, a dimensão religiosa abre novas perspetivas para o elemento espiritual, como resposta ao exclusivo da sociedade da racionalidade instrumental, à margem das religiões tradicionais, apenas como experiência emocional, que abre caminho à credulidade ingénua e ao universo das seitas. Ora, uma sociedade dotada de processos ativos de aprendizagem tem de saber ligar a consciência dos limites e a compreensão da complexidade – sendo que “o saber decisivo da sociedade contemporânea é a capacidade de gerar e organizar um conhecimento especialmente ativo e reflexivo” – na expressão de Giddens. Eis por que razão a fragmentação social e o salve-se quem puder têm de ceder lugar a uma verdadeira partilha de responsabilidades. É neste contexto que se coloca o problema do papel da Igreja Católica na sociedade contemporânea, como uma Igreja aberta, que não receia o presente e o futuro, com procedimentos inteligentes e em diálogo com a ciência. Daí a exigência de compreensão do papel crucial da dignidade humana, do lugar do outro, do exemplo, do cuidado e da atenção.

 

“O cristão está desafiado a sentir a presença de Deus na vida, a fazer a experiência da sua bondade e a oferecer um novo modo de falar de Deus aos homens contemporâneos”. Isto mesmo obriga a ligar a incerteza e a diversidade, a inovação e a criatividade. A sociedade oscila entre o egoísmo e o medo, e esse medo torna-se muitas vezes medo do outro e tentação da autossuficiência e do egoísmo, que levam à cegueira sobre a responsabilidade quer contemporânea quer perante as gerações futuras. E a resistência à tomada de medidas sobre a destruição da natureza e o aquecimento global ou sobre as emissões de CO2 torna-se suicida. Quando o Papa Francisco nos faz um apelo dramático na encíclica “Laudato Si’” é perturbador que haja tanta indiferença. É o “vazio de valores” que se manifesta, é a secularização sem compreensão da dignidade humana que se desenvolve. E Boaventura de Sousa Santos alerta oportunamente para a necessidade de atenção ao “sofrimento injusto a que tanta gente é submetida pela desigualdade e pela discriminação, gente digna a viver em condições tão indignas de fome, de guerra, de abandono”. Quando lemos a análise e interpretação dos dados sociológicos apresentados por Eduardo Duque percebemos que a evolução é semelhante à de outras sociedades, quer no papel e dimensão das religiões, quer na atitude das pessoas. Importa, porém, não ceder a conclusões imediatistas ou precipitadas. A complexidade social leva-nos a lembrar o que Taylor refere relativamente à idade secular. Há fatores com consequências diversas. Os excessos relativamente à racionalidade funcional geram reações como o crescimento das seitas ou a coexistência de absolutismo e relativismo, com agravamento da indiferença e da intolerância. A consciência dos limites obriga, pelo exemplo e pelo cuidado, a novas formas de respeito e salvaguarda da dignidade humana, em nome da responsabilidade para com os outros e do cuidado do futuro. Daí a necessidade da recusa do fatalismo neste domínio. O futuro depende de nós. A integridade / dignidade, os valores, o respeito e a ética referidos na gravura da capa do livro correspondem à necessidade de dar atenção à coesão, à confiança, à justiça e à equidade. E, como afirma José Durán Vasquez da Universidade de Vigo, os inúmeros dados apresentados pelo autor “mostram que a religião não está em retrocesso, mas em processo de constante reconfiguração, como o presente livro ilustrou de uma forma profunda, brilhante e clara”. 

 

Guilherme d’Oliveira Martins