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Isilda Pegado
A Tia Rita
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1. A Tia Rita foi hoje ao Tribunal para ser ouvida no processo de Acompanhamento de Maior que a Segurança Social encaminhou para o Ministério Público. Agora, com 84 anos está debilitada e depende de ajuda das sobrinhas e sobrinhos-netos, para quase tudo o que faz, ou precisa fazer e… não faz.

Há 7 anos teve um AVC que a incapacitou bastante e desde então precisa de andarilho para se deslocar e tudo o mais acontece com os inerentes limites.

2. Perguntada pela Sr.ª Juiz do processo, lá foi respondendo à idade, dia de aniversário, nomes de familiares, etc, etc. Nem de tudo se recordava. Mas isso não a atrapalhou. De forma inteligente dizia – “já não tenho uma ideia muito precisa”.

A certa altura, no meio de tanta pergunta, tomou a palavra e disse – “sabe Sr.ª Dr.ª Juiz, eu fui professora durante 34 anos, ensinei centenas de crianças a ler, a escrever, a fazer contas e a pensar. O que mais me movia era no futuro poder vê-los, rapazes e raparigas capazes de governar a sua vida. Uns anos mais tarde, faziam-se homens e mulheres, casavam, tinham filhos, trabalhavam, levavam os filhos à escola e à catequese… E ali estava eu. Revia-me naqueles actos dos meus antigos alunos. Eu nunca casei, nem tive filhos. Mas tenho uma grande família de sangue e não só. A par do trabalho, tive também a sorte de ter estas sobrinhas, e mais três, que quando adoeci encheram-me de mimos e de outras alegrias.

Não sei o que vai decidir, mas devo dizer-lhe que vivo feliz, com as minhas sobrinhas e com toda a família… Não me peçam para ir às compras porque já não sei o valor das coisas. Seria um desastre… (gargalhada!). Gosto da minha sesta… e quando acordo fico tão feliz por ver a pequenada que me esqueço das horas que me custaram a passar”.

3. Tudo isto foi dito pausadamente, sobre um silencio cerrado e, nos olhos de quem se questionava a si próprio quanto ao sentido da vida. Como ninguém quebrava o silencio embaraçoso, a Tia Rita tomou de novo a palavra e disse:

Posso falar?”

Claro!” – ouviu-se da voz rouca da Juiz.

Tenho um horário exigente, a higiene, as refeições, a hora da missa, o terço, a medicação, e a hora em que os miúdos chegam a casa e tenho de estar pronta para me cumprimentarem. Às vezes canso-me… às vezes… Até gostei de aqui vir hoje.”

4. No meio de um trabalho humanamente exigente, ter pela frente a Tia Rita é um alívio, uma frescura, e uma nova esperança que se abre para todos os que ali estavam.

A Sr.ª Procuradora do Ministério Público, habitualmente cabisbaixa, tinha, há longos minutos, levantado a cabeça e, sem mais, disse – “Muito obrigada Sr.ª D. Rita por tudo o que nos ensinou hoje… Estou certa de que fez dos seus alunos grandes homens, capazes de abraçar a vida e de construir. Em nome do Estado, que aqui represento, agradeço também às sobrinhas que de si cuidam e zelam. A sociedade faz-se e precisa de pessoas como as Senhoras. Os Tribunais não são só para as “patologias sociais”, estas dificuldades que a doença e a idade trazem podem e devem ser vividas de forma realista e digna. Em cada palavra da vossa Tia percebe-se o Amor que dá e recebe constantemente.”

5. A Tia Rita acenou com a cabeça e sem mais palavras, a Sr.ª Juiz, para terminar disse – “cada idade com a sua beleza! Cada vida tem o seu propósito. Gostei muito de a conhecer. Muito obrigada e que tudo corra bem”.

Já fora do Tribunal a Tia perguntou às sobrinhas: “Acham que eles perceberam o que lhes disse?”. E as duas sobrinhas deram uma enorme gargalhada. Era a Tia Rita…

 

P.S: A presente é uma história ficcionada a partir de muitos casos de tios, tias, avós, pais, que vemos nestes processos “de Maior Acompanhado” e, numa fase exigente de vida, mas que mostram a mesma vontade de viver, de construir, de ensinar e dar e receber amor, que não podemos ignorar nem minorar. Felizmente.

O valor de cada momento da vida, de cada circunstância, não cabe numa bitola de “útil” ou “não útil”. Se assim fosse, teríamos o fim da civilização.

 

Toda a vida tem dignidade.

No próximo dia 22 de Outubro, sairemos à rua para a Caminhada pela Vida. Para publicamente, defender a igual Dignidade de todas as Vidas Humanas.

 

Isilda Pegado, presidente da Federação Portuguesa pela Vida