Entrevistas |
Padre Miguel Cabral, autor do livro ‘A Experiência do Limite Humano - Testemunho pessoal em tempo de Covid’
“Acho que os médicos é que me salvaram. A fé deu-me o sentido”
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O padre Miguel Cabral, que esteve em coma induzido devido à Covid-19, acredita que a fé “deu sentido” ao tempo de internamento. Em entrevista ao Jornal VOZ DA VERDADE, o sacerdote do Opus Dei partilha que “Deus se serviu” da sua doença para chegar a outros e diz que a experiência da vulnerabilidade “devia-nos abrir mais ao transcendente, a Deus”.

 

A infeção por Covid-19 fez com que o padre Miguel Cabral estivesse mais de um mês internado, dez dias ventilado e em coma induzido. Os primeiros sintomas levaram-no, a 8 de dezembro, a um internamento de dois dias na enfermaria de um hospital. A situação clínica “parecia estável”, mas, já em casa, “a febre não parava de aumentar”. O agravamento da situação levou-o, de novo, ao hospital, onde foi entubado e induzido o coma. No dia de Natal, “balançou” entre a vida e a morte, mas diz que foi salvo pelos médicos e que a fé deu sentido ao que viveu. Agora, este sacerdote do Opus Dei enriquece a sua reflexão sobre “fé e pandemia” com uma experiência contada na primeira pessoa, no livro ‘A Experiência do Limite Humano - Testemunho pessoal em tempo de Covid’ (Lucerna).

 

Qual a principal razão para colocar a sua experiência como doente Covid-19 em livro?

A razão principal foi o facto de ter sido convidado para escrever um capítulo de um livro sobre a fé e a pandemia. Era a única razão. Quando terminei o texto, enviei-o para ser publicado como um capítulo de um livro, sem nenhuma pretensão que fosse publicado de forma individual. Pensei que, antes de enviar, poderia ser interessante dar a conhecer a alguns dos meus irmãos e amigos. A dada altura, a doutora Isabel Galriça Neto [diretora da Unidade de Cuidados Continuados e Paliativos do Hospital da Luz, em Lisboa, onde o padre Miguel esteve internado para reabilitação], disse-me que o devia publicar separadamente porque podia ajudar muitas pessoas. Depois, falei com o editor do livro [Henrique Mota, da ­Principia Editora], que me disse rever-se em muitas das coisas que escrevi, porque também ele esteve doente recentemente. E confirmou-me que o queria publicar.

 

Foi difícil falar na primeira pessoa?

De facto, pensei duas vezes em expor a minha experiência e quem ler o livro perceberá que eu me sirvo de algumas coisas que me aconteceram para desenvolver alguns aspetos e algumas reflexões teóricas que me parecem mais universais, mais gerais, que podem servir outras pessoas, mas não conto nem metade do que aconteceu de bom ou de mau. O intuito de falar na primeira pessoa era apenas o me servir daquilo que possa ser comum às doenças para ajudar outros.

 

O que a doença veio acrescentar à ideia inicial do livro?

Veio reforçar alguns aspetos. Se calhar, não tinha tão presente a vulnerabilidade a que podemos ficar sujeitos perante um vírus pequenino, microscópico, que não conhecemos e nem o vemos. Como é possível a uma pessoa que fazia desporto, com uma idade relativamente jovem, de repente, em tão pouco tempo, ficar totalmente incapaz até para levantar a mão e pentear-se ou para lavar os dentes sozinho, por exemplo? Eu sabia que isto era possível, mas não imaginava que me fosse acontecer. Realmente, somos muito vulneráveis.

 

É padre, é médico e também doutorado em Teologia Moral (Bioética). Poder-se-ia dizer, à partida, que se encontrava ‘teoricamente’ bem preparado para apontar aos outros um “sentido no sofrimento”. Em algum momento se sentiu distante ou fragilizado nesse sentido?

Não, mas podia ter acontecido... Eu penso que a fé não é como uma couraça que nos impede de nos sentirmos frágeis, a chorar ou sofrer com a doença. É verdade que nós podemos, depois, sobrenaturalizar tudo isso, mas, graças a Deus, não foi isso o que me aconteceu. Eu senti-me sempre sereno, nunca pensei que fosse morrer – não por ter fé, mas, simplesmente, por nunca me ter passado isso pela cabeça. Quando estava no hospital e senti que as coisas estavam a piorar, pedi para que me trouxessem uma imagem de Nossa Senhora que tenho em casa, no meu quarto, e que tem muito a ver com a história da minha vocação, e um crucifixo, que tenho desde a minha Primeira Comunhão, para que estivessem ali presentes. Mas, às vezes, custava rezar... Sei que rezei terços online com a minha família – de que não tenho memória –, mas que ficaram gravados. Mas a presença daquele crucifixo e de ser olhado por Nossa Senhora, ajudou-me na fé, deu-me um conforto, a segurança de que Deus é nosso Pai e há de prover em tudo, há de ajudar. Não me recordo de me ter sentido assustado...

 

Mesmo sentindo dificuldade em rezar?

Tinha dificuldade em rezar. Rezava, todos os dias, o terço, mas distraía-me muito. A falta de ar, a cabeça ia para outro lado... Às vezes, as pessoas dizem que para rezar têm que ‘sentir’. Eu já levo alguns anos de padre e sei que muitas vezes, quando vou rezar, o que eu sinto é sono, mas sei que, por amor a Deus, devo estar presente. Uma mãe que se levanta a meio da noite para ir cuidar do filho o que sente? Sono, mas gosta à mesma do filho e, por isso, vai. Eu sinto essa obrigação de rezar todos os dias.

 

No livro conta a experiência de celebrar a Missa, depois de ser extubado...

Sim, e mesmo antes de ser entubado, recebi a comunhão várias vezes, ou todos os dias – não me recordo. Sei que, graças a Deus, também recebi a Unção dos Doentes. Também não recordo de a ter pedido. Mas era esse o meu desejo.

 

O que a experiência da vulnerabilidade pode acrescentar à pessoa?

Pode ajudar-nos a pensar que não somos autossuficientes, não somos uma peça isolada no mundo ou no universo, não dependemos apenas de nós próprios. A cultura do “eu posso fazer tudo” e de que o “controle da vida está nas minhas mãos”, confrontada com uma doença como esta, um vírus que condiciona toda a vida social e privada, leva as pessoas a sentirem que, afinal, não são nada. Isso ajuda-nos a ser humildes, a reconhecer que não nos damos a nós próprios... Isto devia-nos abrir ainda mais ao transcendente, a Deus.

 

Escreveu que prefere falar desta doença não como “sua”, mas como “nossa”, isto é, de toda a família. Que papel desempenharam a família e amigos durante todo aquele tempo?

Um papel muito importante. Não seria a mesma coisa se estivesse sozinho, apesar das condições da limitação das visitas. Foi muito importante. Quer da minha família sobrenatural, que é o Opus Dei – e lembro-me que li uma carta do prelado, monsenhor Fernando Ocáriz, momentos antes de ser entubado –, quer da minha família de sangue, que é numerosa – sou o mais velho de sete irmãos e tenho 23 sobrinhos. Tive uma proximidade muito grande principalmente da minha mãe. O meu pai também esteve doente por Covid-19 e internado no hospital, na mesma altura. Foi uma fase muito complicada da minha família. E muitas, muitas pessoas se preocuparam. Recebi telefonemas do senhor Patriarca, do Núncio Apostólico, muitas mensagens de sacerdotes da Obra e diocesanos. Gostava de referir que ofereci tudo isto pela Igreja, pelas vocações e pela santificação dos sacerdotes.

 

Refere que a fé tem “profundas implicações existenciais, nomeadamente na doença”. Considera que foi a fé que o salvou?

Acho que os médicos é que me salvaram. A fé deu-me o sentido. Nós, pela fé, podemos morrer, mas também podemos viver. A fé dá-nos uma luz, mas não explica tudo. A fé é como uma lanterna que aponta, que permite dar sentido, ver melhor as coisas, mas não dá para ver tudo. A fé dá-me o conforto de poder unir os meus sofrimentos aos sofrimentos de Cristo, que posso oferecer essa doença pelo Santo Padre, pela Igreja, pelo Patriarca, pela Obra, pela família. É uma oração dos sentidos. Por isso, pela fé, eu sei que Deus se serviu da minha doença.

 

Depois desta experiência entre a vida e morte, que padre Miguel podemos encontrar?

O mesmo, não sei. Eu escrevi no final do livro que as irmãs carmelitas, que rezaram tanto por mim, diziam que eu não sairia igual desta experiência. Eu disse-lhes que não cabe a mim dizer que estou ‘melhor’, mas que aquilo que aconteceu comprovou a verdade da fé em que eu acredito. A fé deu sentido a tudo isto por que passei. Provou que vale a pena!

 

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Ninguém pede a morte, a eutanásia, quando há acompanhamento, compaixão

Teve oportunidade de agradecer aos médicos que o salvaram?

Procurei agradecer aos médicos e aos funcionários hospitalares, concretamente os dos cuidados intensivos, onde eu estive em coma. Fui lá um dia para dar a Unção dos Doentes a uma senhora. Apresentei-me e as médicas, ao verem-me, começaram a chorar. É tão importante as pessoas serem agradecidas... Fiz apenas aquilo que os meus pais me ensinaram.

A minha irmã disse-me que, por vezes, as médicas emocionavam-se ao dizerem-lhe como eu estava. Elas próprias viviam a sério a minha doença. Isso é muito importante, sobretudo agora que se fala tanto da eutanásia... Ninguém pede a morte, a eutanásia, quando há acompanhamento, compaixão.

Noutra das vezes que lá fui, já com exemplares do livro para dar ao chefe de serviço e a outra médica – a única que eu me lembrava –, toquei à porta dos cuidados intensivos e abriram. Estava a telefonista e uma senhora que era auxiliar. Apresentei-me e ela disse-me que se lembrava perfeitamente do tempo em que estive internado e contou-me que quando estive muito mal, pegou na imagem de Nossa Senhora, pô-la em cima do ventilador, a olhar para mim, para tomar conta de mim. Eu fiquei muito emocionado porque esta história nunca a tinha sabido se não fosse a coincidência providencial de aquela senhora estar ali e me ter contado.

 

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Perfil

O padre Miguel Cabral tem 50 anos, é sacerdote da Prelatura do Opus Dei e foi ordenado em 2010, em Roma. É licenciado em Medicina, com especialidade em Oncologia, que exerceu durante quase 10 anos. Depois, estudou em Roma, onde fez doutoramento em Teologia Moral (Bioética). Doutorou-se em Bioética e é membro da Comissão de Ética do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central. Exerce o ministério sacerdotal no Colégio Mira-Rio, como capelão, e no Oratório de São Josemaria. Desde 2020, é assistente espiritual da Associação de Médicos Católicos Portugueses e, nos últimos anos tem acompanhado os estudantes de Medicina na Missão País. Coordenou a publicação do livro ‘Reflexões sobre Ética Médica’ (Principia Editora).

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