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Pedro Vaz Patto
A pessoa para além da sua culpa

As meditações da Via Sacra celebrada este ano em Roma perante o Papa Francisco foram escritas por pessoas de várias formas ligadas ao sistema prisional: vários reclusos, a filha de uma pessoa condenada a prisão perpétua, familiares de uma vítima de homicídio, um guarda prisional, um técnico de reinserção social, um juiz de execução de penas, um sacerdote injustamente acusado de um crime grave de que veio a ser absolvido passados oito anos, entre outras. Cada um destes testemunhos tem um significado especial para mim, que exerço funções de juiz da área criminal já há alguns anos.

Desses testemunhos transparece o arrependimento de quem, como o bom ladrão também recordado nessa ocasião, reconhece o mal que cometeu e a justiça da pena, mas não perdeu a esperança da plena redenção, perante Deus e também perante a sociedade. É essa abertura à esperança no que à sociedade diz respeito que a prisão perpétua (não vigente entre nós, ao contrário do que se verifica em Itália) compromete em absoluto, se executada integralmente (uma pena que tem sido criticada pelo Papa Francisco precisamente porque «mata a esperança»). Na escolha desses testemunhos, não foi esquecida ou desvalorizada a dor das vítimas. Nem a de quem possa ter sido acusado injustamente, como o foi Jesus. Em todos eles se sente o extremo sofrimento deste mundo, desta “periferia” das nossas sociedades.

Retive em particular as palavras do meu colega juiz. Ele sublinhou a necessidade da pena, porque o mal do crime não pode ser banalizado. Mas também a exigência de não “pregar” o condenado para sempre à cruz da sua condenação; isso seria condená-lo pela segunda vez. Há que ajudá-lo a levantar-se e a colher aquele bem que em qualquer pessoa nunca se apaga completamente. Há que reconhecer a pessoa na sua dignidade para além da sua culpa. Todos somos filhos da mesma humanidade e só reencontrando a sua humanidade pode a pessoa condenada reconhecer a humanidade do outro e da vítima.

Todas estas ideias me vieram à mente quando, logo no dia seguinte, foram publicadas normas excecionais que conduziram à libertação de muitos reclusos para evitar o perigo de uma incontrolável difusão da pandemia do covid-19 nas prisões portuguesas. Para além do mérito das opções legislativas em concreto tomadas, de sublinhar é o objetivo de tal medida. Num contexto em que, para salvar vidas humanas (e atuando de forma preventiva, antes de o mal ocorrer, não só quando ele se torna dificilmente remediável) se assumem sacrifícios sociais e económicos de dimensão incalculável, porque a vida humana é o bem supremo e porque cada uma das vidas humanas tem um valor imenso, é de louvar que também a vida de muitos reclusos tenha sido encarada como tal: também ela, como a de qualquer pessoa, tem um valor supremo e só por isso se justificam medidas excecionais como estas.