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Pedro Vaz Patto
Eugenismo ontem e hoje

A questão da legalização do aborto, que parece encerrada noutros países, não o está hoje, seguramente, nos Estados Unidos. Mostram-no alterações legislativas recentes geradoras de acesas polémicas. Alguns Estados, como o de Nova Iorque, aprovaram leis que levam ao extremo a liberalização do aborto. Outros Estados, pelo contrário, aprovam leis restritivas, como as que proíbem o aborto a partir do momento em que no feto já «bate o coração». Estas leis restritivas estão invariavelmente sujeitas a controlo judicial de constitucionalidade, mas aguarda-se com grande expectativa a deliberação que, a esse respeito, venha a ser tomada pelo Supremo Tribunal, o qual, com a sua nova composição, poderá alterar o sentido da jurisprudência que tem servido de base à liberalização do aborto, iniciada pelo acórdão Roe v. Wade em 1973.

Entre essas leis restritivas, contam-se as que proíbem o aborto seletivo, ou seja, o que é motivado pelo sexo, pela raça ou por alguma forma de deficiência do nascituro. No Estado de Indiana foi aprovada, por larga maioria, uma lei nesse sentido. A questão da sua constitucionalidade foi suscitada perante o Supremo Tribunal. Este não chegou a pronunciar-se sobre este aspeto da lei por razões processuais.

Na sua declaração de voto, o juiz Clarence Thomas afirmou que não poderá ser evitada no futuro a questão da ligação entre a legalização do aborto e o eugenismo. E traça uma desenvolvida história do eugenismo nos Estados Unidos, salientando o seguinte:

Esse movimento teve o seu auge nas primeiras décadas do século XX. Baseia-se nas teses do darwinismo social e da exaltação da sobrevivência dos mais fortes (survival of the fittest) e da eliminação dos inaptos (unfit). A fundadora da Planned Parenthood organização que é hoje a principal prestadora de serviços de aborto nos Estados Unidos, Margaret Sanger, seguia tais teses e advogava o controlo dos nascimentos (não o aborto) como instrumento de «saúde racial», de modo a impedir o nascimento daquela «classe de seres humanos que nunca devia ter nascido», dos inaptos (unfit) e dos fracos de mente (feeble minded). O eugenismo, por vezes associado ao racismo, encontrou, na altura, eco entre académicos e intelectuais tidos por progressistas. Conduziu à aprovação de leis que impunham a esterilização obrigatória de pessoas com deficiência. E o Supremo Tribunal, no acórdão Buck v. Bell, de 1927, deu cobertura a essas leis.

Depois da Segunda Guerra Mundial, e da experiência traumática do nacional-socialismo, também ele influenciado pelo eugenismo, este perdeu a aceitação social e cultural que tinha e a própria palavra deixou de ser utilizada com a conotação positiva que adquirira.

Mas a legalização do aborto veio permitir que este servisse de instrumento de implementação do eugenismo, agora até de uma forma mais efetiva do que através do controlo dos nascimentos e da esterilização forçada, O aborto seletivo em função do sexo (feminino) é frequente em populações chinesas e indianas. O aborto atinge a população afro-americana de uma forma proporcionalmente mais elevada. E, sobretudo, é o aborto que tem permitido a eliminação sistemática de nascituros com deficiência, designadamente com trissomia 21. Em vários países, a percentagem desses nascituros que é vítima de aborto aproxima-se dos cem por cento (percentagem já atingida pela Islândia).

Tudo isto é afirmado com clareza na declaração de voto do juiz Clarence Thomas. Faz recordar o célebre conto de Hans Christian Andersen, em que só uma criança afirmou o óbvio (esta declaração de voto afirma o óbvio), que todas as outras pessoas também viam, mas fingiam ignorar para não serem inconvenientes (hoje diríamos, “politicamente incorretas”).

Na verdade, a ligação entre o eugenismo e a legalização do aborto (designadamente no que se refere à quase total eliminação dos nascituros com trissomia 21) não pode continuar a ser ocultada, ignorada ou encarada com indiferença. Como não pode continuar a recusa em aprender as lições da história do eugenismo.