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Apresentação da encíclica “Laudato si’ – sobre o cuidado da casa comum”
“Não fiquemos à porta do ser humano”
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Uma encíclica “global, integral, atual e contemporânea”. Foi desta forma que o Cardeal-Patriarca apresentou, no passado dia 24 de junho, na igreja de São João de Deus, em Lisboa, a nova carta encíclica “Laudato si’ – sobre o cuidado da casa comum”, do Papa Francisco. Em seis pontos-chave, D. Manuel Clemente apontou algumas propostas para a realização de uma “conversão ecológica”.

 

1. Magistério social da Igreja

“A novidade desta encíclica Laudato si’ é exatamente a sua globalidade ou integralidade porque o Papa Francisco, ao incidir sobre a ecologia coloca na ecologia também a sociedade: a socioeconomia e a sociopolítica”, destacou D. Manuel Clemente, no encontro que decorreu no passado dia 24 de junho. O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa começou por sublinhar o carácter “atual e contemporâneo” do documento, referindo a importância da especificidade das cartas encíclicas para a vida da Igreja no mundo. “Até ao século XIX, não havia muito lugar ao tratamento doutrinal destes temas. O social era cumprir os mandamentos e uma série de regras, criando-se um espaço que não é tido como diretamente eclesial. É isso que vai ocasionar aquilo a que chamamos ‘Magistério Social da Igreja’ ou ‘Doutrina Social da Igreja’; ou seja, os Papas do século XIX para o século XXI vão-se debruçar sobre realidades que não são imediatamente confessionais, tirando consequências sociais dos ensinamentos e atitudes de Cristo, num mundo onde os crentes também estão”, explicou D. Manuel Clemente.

 

2. «Rapidación»

Para falar sobre a “velocidade galopante” do desenvolvimento tecnológico, o Cardeal-Patriarca de Lisboa citou o Papa Francisco, no ponto 18 da carta encíclica: «Embora a mudança faça parte da dinâmica dos sistemas complexos, a velocidade que hoje lhe impõem as ações humanas contrasta com a lentidão natural da evolução biológica. A isto vem juntar-se o problema de que os objectivos desta mudança rápida e constante não estão necessariamente orientados para o bem comum e para um desenvolvimento humano sustentável e integral». D. Manuel Clemente considerou que o Papa “coloca muito bem a raiz do problema ecológico atual designando-o como ‘rapidación’ (expressão em espanhol)”, e acrescenta: “Nunca como hoje a humanidade interferiu tanto naquilo que é comum: na terra, nos seu recursos, no ambiente, em tudo, como a possibilidade tecnológica galopante que vai muito mais depressa do que somos capazes de entender e, muito menos, de dirigir. Estamos dentro de um problema que é muito grave, muito complexo, com muitas consequências ecológicas e com pouca possibilidade para parar e vermos para onde nos estão a levar”.

 

3. Criação

“Esta encíclica é dirigida a toda a gente mas quem a subscreve é um crente e não está a fingir o contrário. Um crente alicerçado na tradição bíblica, não olha para a natureza de uma maneira positivista, mas de uma maneira crente. Por isso, o Papa Francisco distingue entre natureza e criação”, sublinhou D. Manuel Clemente na apresentação, em Lisboa, da Carta Encíclica Laudato sí’, citando o ponto 76 deste documento: «Na tradição judaico-cristã, dizer «criação» é mais do que dizer natureza. (...) A criação só se pode conceber como um dom que vem das mãos abertas do Pai de todos, como uma realidade iluminada pelo amor que nos chama a uma comunhão universal». “Se isto nos é dado a todos, é para chegar a todos”, apelou o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, lembrando que “criação pressupõe um criador permanente, ou seja, em cada momento tudo aquilo que aparece e manifesta brotam de uma vontade criadora que faz com que as coisas aconteçam, não limitada a um princípio mas como uma criação permanente, que se agradece e à qual se retribui”, explicou. D. Manuel Clemente, considerou ainda que “este aspeto, presente em toda a encíclica, tem várias vezes essa consequência social: se acreditamos que tudo quanto existe é criação de um criador para todas as criaturas. Por isso, não pode ser absorvido apenas por alguns em detrimento do conjunto, não pode ser tido como uma propriedade absoluta de quem quer que seja exatamente por causa desta fé num criador universal de tudo e para todos”.

 

4. Carácter humano da ecologia

Sobre a dimensão humana da ecologia, referida várias vezes pelo Papa Francisco no documento, D. Manuel Clemente considera que essa referência visa “ultrapassar o contra senso, tantas vezes verificado, em que se fala de ecologia para tudo menos para o ser humano” e cita os pontos 136 e 155 da nova carta encíclica: «É preocupante constatar que alguns movimentos ecologistas defendem a integridade do meio ambiente e, com razão, reclamam a imposição de determinados limites à pesquisa científica, mas não aplicam estes mesmos princípios à vida humana». «A ecologia humana implica também algo de muito profundo que é indispensável para se poder criar um ambiente mais dignificante: a relação necessária da vida do ser humano com a lei moral inscrita na sua própria natureza». “É exatamente essa lei moral e inscrita na própria natureza que faz de nós uma humanidade. É porque temos uma base comum que nós nos podemos considerar uma humanidade. Se queremos respeitar os dinamismos naturais então não fiquemos à porta do ser humano”, apelou o Cardeal-Patriarca de Lisboa, na igreja de São João de Deus.

 

5. Progresso

«Trata-se simplesmente de redefinir o progresso. Um desenvolvimento tecnológico e económico, que não deixa um mundo melhor e uma qualidade de vida integralmente superior, não se pode considerar progresso». Partindo da citação do ponto 194 da encíclica, D. Manuel Clemente, considera que “o critério para avaliar se houve progresso e não regresso, é o mundo ficar melhor, a vida com mais qualidade e superior e não é apenas haver mais coisas, mais possibilidades práticas, mais possibilidades tecnológicas”. “O critério humano tem que prevalecer com o critério qualitativo e não quantitativo. A qualidade e qualificação humanas são a medida do real progresso”, afirmou o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, apontando para “um conjunto de sugestões preciosas, acerca da ocupação do espaço, tempo e relacionamento entre as pessoas, para um verdadeiro progresso”, deixados pelo Papa Francisco no capítulo V da carta.

 

6. Conversão ecológica

Embora seja comum ler-se ou falar-se de “conversão”, o termo “conversão ecológica”, aplicado pelo Papa Francisco neste documento recente, “é uma novidade”, considerou D. Manuel Clemente, citando o ponto 220 da carta encíclica:

«Esta conversão comporta várias atitudes que se conjugam para ativar um cuidado generoso e cheio de ternura. Em primeiro lugar, implica gratidão e gratuidade, ou seja, um reconhecimento do mundo como dom recebido do amor do Pai, que consequentemente provoca disposições gratuitas de renúncia e gestos generosos. (...) Implica ainda a consciência amorosa de não estar separado das outras criaturas, mas de formar com os outros seres do universo uma estupenda comunhão universal. (...) Além disso a conversão ecológica, fazendo crescer as peculiares capacidades que Deus deu a cada crente, leva-o a desenvolver a sua criatividade e entusiasmo para resolver os dramas do mundo». “Esta encíclica é uma proposta de conversão ecológica para crentes e não crentes que queiram ouvir”, afirmou o Cardeal-Patriarca de Lisboa, destacando três alíneas para a realização desta “conversão ecológica”: “A primeira é de gratidão – gratidão por tudo aquilo que é a vida. Às vezes queremos fazer nossas as coisas que nos foram dadas. Deixemos que elas passem por nós; segunda alínea: comunhão. Este sentimento de que tudo puxa tudo. Estou eu, os outros, as aves, os animais, a terra, o ar... Todos nós somos interdependentes uns dos outros; terceira alínea: o autodesenvolvimento solidário – cada um de nós tem tanto para dar... Para além de dever ser estimulado e apoiado, também deve fazer por isso, neste sentido solidário para que aquilo que é a sua quota-parte não fique por oferecer”, concluiu D. Manuel Clemente, perante um público de diversas áreas da sociedade que esteve presente na apresentação da segunda carta encíclica do Papa Francisco, que foi publicada pelo Vaticano, no passado dia 18 de junho.

 

Sinais dos tempos

Este encontro contou também com a presença do presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), Pedro Vaz Patto, que é também cronista regular do Jornal VOZ DA VERDADE, que sublinhou a “oportunidade política” do documento, a poucos meses da Cimeira de Paris sobre as alterações climáticas, que vai decorrer no final deste ano 2015. Para o jurista, nesta publicação “a Igreja faz suas as angústias e preocupações da humanidade de hoje e está atenta aos ‘sinais dos tempos’”, refere Pedro Vaz Patto. O Papa Francisco, “com a frontalidade a que nos vem habituando”, faz uma crítica às reações fracas “mais comuns entre os governos”, contrapondo com a “urgência de mudanças”, designada na encíclica por «eficientista e imediatista», “de horizontes limitados ao curto prazo”, alerta.

“O Papa não se limita a juntar-se ao coro de vozes que hoje já se ouvem com insistência. Também vai contra a corrente do ‘politicamente correto’. Não adere acriticamente à agenda da ONU”, como por exemplo, “quando rejeita a tese de que a proteção do ambiente impõe a redução da população dos países mais pobres” e quando “critica o condicionamento de ajudas a estes países à aceitação de programas de saúde reprodutiva”, considera Pedro Vaz Patto.

 

Dom de Deus

De entre os seis capítulos que compõem a carta encíclica Laudado si’, Vaz Patto dá especial destaque ao capítulo II – ‘O Evangelho da criação’, por “ajudar a compreender a motivação mais profunda do cuidado para com o ambiente, por ajudar a desfazer vários equívocos que podem surgir e porque é nele que reside o contributo mais caraterístico e insubstituível da Igreja para o debate e a ação sobre o cuidado do ambiente”. O presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz apontou depois para um respeito maior pela criação: “A teologia da criação leva-nos a respeitar esta como precioso dom de Deus. A criação não é Deus, não é, pois, intocável ou perfeita em si mesma. O ser humano é criatura, não se cria a si próprio. É uma criatura dotada de sublime dignidade, mas não deve substituir-se ao Criador, deve, antes, com Ele, colaborar, completando a sua obra, sem a destruir”, afirmou Vaz Patto.    

 

Lugar na criação

Sobre o lugar do ser humano na criação – referido pelo Papa Francisco na sua última carta encíclica, o presidente da CNJP defendeu que a “ecologia numa perspetiva cristã não é anti-humanista, nem equipara a dignidade das várias espécies, como pretendem as correntes que criticam o chamado ‘especismo’, inspiradas pelo mote ‘todos iguais, todos animais’, e que chegam a afirmar ter mais valor um mamífero adulto de outra espécie do que um ser humano na fase embrionária ou recém-nascido”. Para Pedro Vaz Patto, este documento do Papa Francisco “reconhece, citando o Catecismo da Igreja Católica, a legitimidade da experimentação com animais quando está em causa a possibilidade de salvar vidas humanas através da medicina. Mas a teologia da criação também nos leva a compreender que o ser humano não deve substituir-se ao Criador, nem tratar a natureza como objeto do seu domínio absoluto. A especial dignidade da espécie humana é um privilégio, mas também uma responsabilidade”.

 

Novo modelo de progresso

Fazendo referência às críticas que apontavam para um “regresso da Igreja ao «anti-modernismo»”, Pedro Vaz Patto afirmou que “a encíclica não condena a ciência e a tecnologia, que são «um produto estupendo da criatividade humana que Deus nos deu»(...). Condena aquilo a que chama ‘paradigma tecnocrático’, a pretensão de, já não intervir na natureza acompanhando as possibilidades por esta oferecidas”. O Papa Francisco “não condena o progresso, propõe um novo modelo, baseado mais no ser do que no ter”, afirmou Pedro Vaz Patto, referindo também o alerta de Francisco para a “incoerência de quem pretende proteger outras espécies e não o faz com tanto vigor quando está em causa a espécie humana, incluindo na sua fase embrionária”.

A concluir, o presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz considerou o último capítulo da carta encíclica Laudato si’ como uma proposta “para todos e cada um de nós – não apenas os responsáveis políticos – que deve propor “algo de mais profundo” que “contraste com a mentalidade e os hábitos mais correntes: Trata-se de educar para virtudes como a gratidão, a gratuidade, a sobriedade e a humildade”, apontou Pedro Vaz Patto.

 

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Como obter a encíclica Laudato si’?

A Carta Encíclica “Laudato si’ – sobre o cuidado da casa comum”, do Papa Francisco, está disponível, de forma gratuita, em português, no site do Vaticano, em www.vatican.va.

A Paulinas Editora e Paulus Editora têm à venda, nas livrarias de todo o país, o documento do Papa Francisco. A publicação tem um custo de 5 euros.

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