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Pedro Vaz Patto
Uma maior fidelidade ao Evangelho

Do rico legado do teólogo Joseph Ratzinger e Papa Bento XVI muito tem sido destacado. Parece-me importante destacar o que ele afirmou no célebre discurso aos membros da Cúria Romana, por ocasião do Natal de 2005, sobre a correta interpretação do magistério do Concílio Vaticano II (magistério a que ele deu o seu contributo e a que sempre aderiu). Essa afirmação vale para outras possíveis inovações da doutrina da Igreja, do passado e do presente.

Afirmou então Bento XVI que essa correta interpretação (“hermenêutica”) é a que salienta as inegáveis inovações e reformas desse Concílio numa perspetiva de continuidade com a doutrina anterior, e não numa perspetiva de rutura com essa doutrina. Compreende-se que o tenha dito: porque não foi só então que a Igreja nasceu; porque esta é una não apenas num dado momento histórico (sincronicamente), mas também na sucessão dos vários períodos históricos (diacronicamente); porque Jesus Cristo (que «é o mesmo ontem, hoje e por toda a eternidade» - Hb 13,8) lhe prometeu a sua presença para sempre («Estarei convosco até ao fim dos tempos» - Mt 28,20); porque a luz do Espírito Santo que a ilumina e guia não a pode levar a dizer algo numa altura e o seu contrário noutra altura. Se assim não fosse, a doutrina da Igreja estaria, como estão as doutrinas humanas, sujeita à usura do tempo, às modas que se sucedem, às diferentes fações que se digladiam e alternam no poder.

As inovações da doutrina conciliar devem, pois, ser vistas como um aprofundamento e desenvolvimento da doutrina anterior, do “depósito da fé” diretamente recebido pelos apóstolos e mantido ao longo dos tempos pelos seus sucessores. Como uma planta que vai crescendo e dando novos frutos sem renegar as suas raízes. Dizia São João XXIII (citado nesse discurso de Bento XVI), a propósito da inovação do Concílio, que não se tratava de alterar o Evangelho, mas de o entender melhor; tratava-se de manter a doutrina «certa e imutável», «pura e íntegra sem atenuações nem desvios», mas também de «a aprofundar e apresentar de modo correspondente às exigências do nosso tempo».

Considerar as exigências do nosso tempo não significa adaptar a doutrina à cultura dominante no que ela tem de contrário ao Evangelho e deixar de assumir uma postura “contra a corrente” como foi a dos primeiros cristãos. Pelo contrário, as inovações decorrentes do Concílio Vaticano II ou outras, porque verdadeiramente inspiradas pelo Espírito Santo prometido à Igreja para sempre, significam uma cada vez maior fidelidade à mensagem de Jesus. Isto porque essa mensagem é um tesouro inesgotável, nunca podemos dizer que dela colhemos toda a sua riqueza. Dele retiramos sempre, como diz o Evangelho, «coisas novas e coisas velhas» (Mt 13, 52).

Isso mesmo afirmou recentemente o filósofo francês Rémi Brague, também a propósito do legado de Bento XVI, numa entrevista ao jornal Le Figaro: conservar o “depósito da fé” será como conservar as preciosas relíquias de um museu, mas com a diferença de que este “depósito” provém de Deus que é infinito e, por isso, nunca poderemos dar por concluído o inventário das suas riquezas.

Os “sinais dos tempos” a que também se referem vários documentos do Concílio Vaticano II não são as modas da cultura dominante numa determinada época (estas muitas vezes efémeras e mutáveis), são sinais de que a providência divina se serve para conduzir a Igreja no sentido de uma mais genuína fidelidade à Revelação. Não são certamente os que contradizem essa Revelação.

Como exemplo de uma inovação conciliar que poderia ser interpretada como rutura da doutrina anterior (como fazem os adeptos de Marcel Lefebvre como justificação para rejeitarem o Vaticano II), mas que deve ser vista como uma maior fidelidade ao Evangelho, Bento XVI indica, no referido discurso aos membros da Cúria Romana, o da doutrina sobre a liberdade religiosa. Esta não decorre, como alegam os críticos dessa doutrina, de um qualquer positivo “direito ao erro” ou da indiferença perante as verdades da fé numa perspetiva de relativismo religioso, como se todas as religiões se equivalessem (se assim fosse, estaríamos, na verdade, perante uma rutura). Decorre da noção da dignidade da pessoa humana, a qual exige a rejeição de qualquer imposição coerciva de algum credo religioso. Esta noção é a que, como explicita a declaração conciliar Dignitatis Humanae, corresponde à doutrina teológica da fé (que supõe uma adesão voluntária, como resposta de amor ao amor de Deus), ao comportamento de Jesus Cristo e dos apóstolos (que nunca recorreram à coerção para difundir a sua mensagem) e também ao testemunho dos primeiros mártires (mártires pela liberdade de consciência e de religião, que, em nome da sua fé, recusavam a adoração do imperador, religião oficial da altura). Uma aparente descontinuidade da doutrina conciliar sobre liberdade religiosa (porque contrária a declarações eclesiais anteriores) representa, pois, para Bento XVI, uma continuidade a um nível mais profundo. Não se trata de adaptação ao “ar do tempo”, mas de uma maior fidelidade ao Evangelho.

É isso que devemos buscar também hoje, quando muitas verdades doutrinais parecem ser postas em causa: apenas e só uma cada vez maior fidelidade ao Evangelho.

 

Pedro Vaz Patto