Doutrina social |
Guerra da Rússia na Ucrânia
Quando a religião nega a religião
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“O Reino de Deus não é uma questão de comer e beber, mas de justiça, paz e alegria no Espírito Santo.” (Rom 14,16)

 

Da surpresa à perplexidade

Iniciada a “operação militar especial” a 24 de Fevereiro de 2022, logo o Patriarca de Moscovo nos surpreendeu com um discurso que dava a perceber uma clara sintonia ideológica com a iniciativa de Putin. Referindo-se à operação e não se demarcando do seu mentor, é-lhe oferecido um respaldo ideológico de peso, que qualquer ditador gostaria de encontrar. Cirilo vê aí uma luta pelos ideais conservadores da Igreja Ortodoxa Russa contra um mundo exterior imoral e decadente. Tal posicionamento provocou reações nos mais diversos meios religiosos cristãos, incluindo numerosas vozes dentro da própria comunidade ortodoxa russa. O Conselho Mundial das Igrejas fez pressão para que Cirilo fosse expulso desse Conselho. Ficou uma marca do encontro entre o Papa e o Patriarca, durante o qual Francisco procurou que Cirilo exercesse a sua influência para dissuadir Putin de levar para a frente a invasão: “Irmão, nós não somos clérigos do Estado, nem podemos usar a linguagem da política, mas sim a de Jesus”.

A surpresa até se pode compreender quando estamos numa sociedade fechada, domesticada e controlada por lideranças totalitárias, na qual a Igreja está inserida. O espanto cresce quando, nos últimos dias, na liturgia da Epifania, ele fala de “alguns néscios” que alimentam a ideia de que a Rússia pode ser derrotada e que lhe podem ser impostos valores que nem sequer podem ser denominados como tal”. E na pregação lança a grande cartada: “Acreditamos que o Senhor não abandonará a terra russa e dar-nos-á força, se necessário, para proteger a sua terra e o seu povo”. E passa a imaginar um cenário apocalíptico: “qualquer tentativa de derrotar a Rússia significará o fim do mundo”.

 

Quando a religião se nega

Tal pensamento seria entendível nos séculos passados, onde há cenas parecidas, embora em palcos diferentes. E se nós lá estivéssemos estado talvez fizéssemos a mesma figura. Mas estamos no século XXI. Durante a vida de Cirilo e de muitos de nós já aconteceram tragédias em que o pior da humanidade se manifestou. Terá ele perdido a memória da Segunda Guerra Mundial? Não se lembrará do que se passou ali ao lado com as atrocidades dos nazis nos campos de concentração ou de extermínio? Não saberá o que se passou dentro da sua casa, no seu país, com os Gulags, ou não terá ouvido falar ou lido Soljenitsin? Porque não reagiu perante os mortos, os feridos, e os refugiados da Guerra da Síria, mas concedeu a bênção à intervenção russa em favor de Bashar al-Assad, considerando-a como uma “guerra santa para proteger os cristãos”? Como pessoa com formação, não se lembrará do Holodomor que, nos anos trinta, provocou milhões de ucranianos mortos pela fome, eles que faziam parte do povo sob o cuidado pastoral do seu Patriarcado?

A indiferença ou o apoio explícito a essas barbaridades são a negação da “alma” do cristianismo e das grandes religiões que colocam a compaixão e o amor ao próximo como exigência de fé. Meter Deus no meio desta guerra, gratuitamente provocada e linearmente agressiva, para a justificar, parece-me obsceno.

 

Negar a humanidade é negar a Deus

Contemplando as cenas diárias de destruição e morte na Ucrânia podemos ficar sem palavras, como quando se visita Auschwitz, onde as pessoas caminham, seguindo as explicações através de auscultadores sintonizados com o guia. Essa visita, num silêncio pesado, é como um murro no estômago. E somos apenas visitantes.

Mas como é possível não ter sentimentos perante tamanha desumanidade? E se é de pressupor que um discípulo de Cristo tenha os sentimentos do Mestre, então ficamos escandalizados, não tanto com o silêncio, mas sobretudo com o respaldo ideológico e religioso a ditadores que apenas são conduzidos pela sede do domínio e do poder, que os torna cegos e insensíveis. É animador, durante estes dias do Oitavário pela União dos Cristãos, constatar que tantas barreiras já foram derrubadas entre eles; mas é triste constatar como novos muros de separação são construídos ou consolidados pela subversão dos valores evangélicos e assim se faz a negação da religião verdadeira, que nas palavras de S. Paulo, é “justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rom 14,16)  e cuja prova dos nove se tira no capítulo 25 de S. Mateus, mostrando-nos que não ligar às necessidades dos mais pequeninos corresponde a negar Deus.

texto pelo P. Valentim Gonçalves, CJP-CIRP
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