
Ao incumbir a diocese de Lisboa de acolher a Jornada Mundial da Juventude, o Papa Francisco propôs-nos como tema uma passagem do Evangelho de Lucas. Tendo acolhido a mensagem do anjo Gabriel, e sabendo que a prima também estava para ser mãe: “Maria pôs-se a caminho e dirigiu-se à pressa para a montanha… [onde] entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel” (Lc 1,39-40). O episódio tem múltiplas leituras: a atenção de Maria para com a prima de idade avançada, que sofria por não ter filhos; ou a alegria, numa Bíblia tantas vezes lacónica sobre a gravidez e o parto, de duas mulheres que descobrem que vão ser mães. No contexto da Jornada, o episódio evoca o impulso missionário de quem descobriu Cristo na sua vida e pretende partilhar a alegria que isso lhe traz.
Pode parecer descabido, num calendário inter-religioso, referir à cabeça a Jornada; mais ainda, destacar o seu tema de cariz tão decididamente mariano. Mas esconder diferenças não é o caminho do intercâmbio ecuménico, nem do diálogo inter-religioso. A vivência espiritual para que as práticas religiosas apontam é sempre singular e irrepetível. Por isso mesmo, ela é perigosa. Altera a ordem espiritual e até material estabelecida. Despertando nas profundidades mais recônditas da interioridade humana, desencadeia, qual proverbial pedrinha, uma avalancha de mudanças de alcance imprevisível. Aos olhos da psicologia, poderão ser aparentados os sentimentos associados às várias práticas e tradições religiosas. Mas pobre seria o diálogo dos viajantes da interioridade humana se eles se limitassem a partilhar esses sentimentos, silenciando a Jerusalém, o Machu Pico, ou o Borobudur que os suscitaram.
Recordava o Papa Bento XVI, em 2008, que a “a verdade fora de Deus não existe como uma realidade em si. Seria um ídolo. A verdade só pode desenvolver-se na relação com o outro, aberta a Deus, cuja vontade é exprimir a sua alteridade através e nos meus irmãos. […] A verdade não é propriedade de ninguém. É sempre um dom que nos chama a um caminho cada vez mais profundo de assimilação a essa verdade [… Com efeito,] só no encontro de amor se desvenda a verdade” (Exortação apostólica, Ecclesia in Medio Oriente, 27). Não terá sido também por isso que Maria “se dirigiu à pressa para a montanha…”?
Pe. Peter Stilwell, diretor do Departamento das Relações Ecuménicas e do Diálogo Inter-Religioso do Patriarcado de Lisboa, na apresentação do Calendário Inter-religioso ‘Celebração do Tempo 2023’
Informações: www.paulinas.pt/loja/celebracao-do-tempo-2023