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António Bagão Félix
Crescer por dentro

Escreveu Miguel Torga na sua carta ao romancista e poeta brasileiro Ribeiro Couto (“Traço de União - Temas portugueses e brasileiros”, edição Glaciar, 2016) que “progredir é crescer por dentro”. Por diferentes palavras, só do nosso interior se pode transformar o que nos é exterior. Assim, se completa o exterior que brota de dentro e o interior que perscruta de fora.

 

Há quem chame renovação, revolução ou conversão a esta transformação interior que nos leva a uma mudança exterior. Depende da perspectiva doutrinária, da ética religiosa ou até da estética política. Seja qual for o ângulo, a sua essência pressupõe um profundo respeito pela pessoa no seu todo e encerra uma abordagem personalista em que a soma não elimina as parcelas, antes se fortalece pela diferença das partes.

 

No fundo, voltamos à velha questão da ética personalista da verdade e do dever. Sobretudo do imperativo categórico de Kant que costumamos resumir na plebeia asserção de que não faças aos outros o que não queres que te façam a ti, mas que também devemos repristinar pela positiva (faz aos outros o que queres que te façam a ti). Voltamos ao nosso interior, onde não há lei, mas nós. Crescendo ou minguando? Aprofundando ou tornando-nos derrotados e indiferentes? Sendo exigentes connosco ou exigindo apenas do outro?

 

São Tomás de Aquino na sua obra-prima Suma Teológica, escrita na segunda metade do século XIII, distinguia sagazmente os bens interiores e os bens exteriores. Nos primeiros está o progresso, ou pelo menos a condição necessária para o concretizar. A que só nos obrigamos por dentro para os concretizarmos por fora: a solidariedade, a lealdade, a solicitude, a perseverança, o carácter, a decência, a autenticidade, a integridade, a honradez, a mansidão, a prudência e tantas outras expressões que podemos partilhar sem ficar com menos, mas permitindo que o outro fique com mais. Nos bens exteriores estão o dinheiro, o poder, a carreira, o sucesso, os interesses que, se divididos ou mancomunados, com o outro significam quase sempre menos para todos e tantas vezes dilaceram a ideia do bem comum.

 

Os bens interiores forjam-se e robustecem na ética e não na lei. Os bens exteriores precisam do ordenamento jurídico para serem limitados e não abusados. Mas se não tiverem o respaldo dentro de nós - ou voltando a Torga, se nós não crescermos - depressa se tornam num regresso e jamais num progresso.

 

Permitindo-me aqui fazer uma adaptação do que escreveu o filósofo francês André Comte-Sponville, poderemos falar de cinco ordens: a ordem tecnocientífica (estruturada por oposição do possível ao impossível), a ordem económica (estruturada por oposição do provável ao improvável), a ordem jurídico-política (estruturada por oposição do legal ao ilegal), a ordem da moral (entre o legítimo e o ilegítimo) e a ordem ético-humanista do amor social (o amor à verdade, o amor da liberdade e o amor da humanidade e do próximo). As primeiras quatro são necessárias, mas nunca serão suficientes, seja na sua órbita ou na sua interacção com as outras. Para estas ordens (externas) há a necessidade individual e colectiva de as melhorar consciente das suas limitações. Mas a ordem do amor social não precisa de ser limitada, mas antes completada. Ou seja, do nosso interior para o interior do outro, que assim se renova no exterior de ambos. É que jamais haverá o tudo sem o todo. 

 

Como refere o Papa Francisco na Encíclica “Fratelli tutti”, “a partir do amor social, é possível avançar para uma civilização do amor a que todos nos podemos sentir chamados […]. O amor social é uma força capaz de suscitar novas vias para enfrentar os problemas do mundo de hoje e renovar profundamente, desde o interior, as estruturas, organizações sociais, ordenamentos jurídicos”.

Já Bento XVI na Encíclica “Caritas in Veritate” aponta para a existência de um “sentido interno” dentro da alma humana. Este sentido consiste num acto que se realiza fora das funções normais da razão, um acto não reflexo e quase instintivo, pelo qual a razão, ao dar-se conta da sua condição transitória e falível, admite acima de si mesma a existência de algo de eterno, absolutamente verdadeiro e certo. O nome, que Santo Agostinho dá a esta verdade interior, umas vezes é Deus, outras e mais frequentemente é Cristo.

 

António Bagão Félix

(Por opção pessoal, este texto não segue o chamado AO90)

 

foto por Zac Durant on Unsplash