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Pe. Alexandre Palma
Ucrânia, a guerra e as cegueiras

«Poderá um cego guiar outro cego?» (Lc 6, 39). Enquanto deflagrava a guerra na Ucrânia, éramos confrontados com esta pergunta de Jesus. A Palavra antiga viajou no tempo e veio oferecer-nos a chave de leitura da hora presente: a guerra é sempre uma forma de cegueira. Pior, é o acumulado de várias formas de cegueira. Porque uma guerra nunca se faz sozinha. Precisa da acção e da inacção de muitos para poder acontecer. Entre estes estão os outros, mas também estaremos nós.

Mais óbvias para nós serão as cegueiras dos outros. Líderes cegos que, guiando outros, os conduzem para o abismo. Ainda Jesus: «não cairão os dois nalguma cova?». Líderes cegos que não vêem os outros como seus semelhantes. Ainda a pergunta antiga de Deus, que será também a última que lhe ouviremos fazer: «Onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9). Cegos também aqueles que se deixam levar, que executam a vontade de outros renunciando a pensar e que o fazem sem se perguntar porquê nem para quê. Importa sempre voltar à lição de Hannah Arendt: sem a cumplicidade das pessoas normais o mal nunca se tornaria coisa banal.

Mas há também as nossas próprias cegueiras. E talvez sejam estas que interiormente mais nos incomodem. O que agora vemos, a guerra na Europa, mais perto de nós, entre gente que nos será mais próxima, é também a denúncia de outras guerras que escolhemos não ver. Porque, como se diz numa música de Fausto, «a guerra é guerra». Perto ou longe, na Ucrânia não muito diferente do que se passa na Síria ou no Iémen, no Corno de África ou no norte de Moçambique. Os refugiados ucranianos que agora vemos são irmãos gémeos de todos os outros refugiados que, porventura, vamos preferindo não ver. E ainda, como não perceber no que hoje sucede a denúncia de uma peculiar forma de cegueira, de quem quis ver no presidente Putin um exemplo moderno de governante cristão? As raízes cristãs da Europa, para serem verdadeiramente defendidas e mobilizadas, não podem ficar cativas de apoios a algumas causas nem de instrumentalizações ideológicas. Não o ver é uma forma de cegueira, infelizmente, bem conhecida da milenar história da Igreja.

Há também a nossa cegueira de todos os dias para um conjunto de valores que agora vemos espelhados na força moral dos nossos irmãos ucranianos. Quando nos comovemos com a generosidade do seu sacrifício, não estamos, ao mesmo tempo, a denunciar a redução dos nossos horizontes de vida à conservação de situações de conforto? Quando nos impressionamos com a sua entrega por um futuro melhor para outros, não vemos exposta a nossa resistência em nos darmos em favor de uma causa comum e maior do que nós próprios?

Se a guerra é uma história de cegueiras, a paz será o seu contrário: a capacidade de ver. Construir a paz é, pois, o acto de abrir os olhos. Certo dia Jesus fez a alguém a pergunta mais extraordinária que alguma vez nos poderia fazer: «Que queres que te faça?» (Lc 18, 41). Esse afortunado respondeu a coisa justa: «Faz-me ver!». Era um cego e disso tinha consciência. Por isso pediu a visão. Por isso encontrou a paz.